sábado, 26 de novembro de 2022


26 DE NOVEMBRO DE 2022
ELIANE MARQUES

A ESTRANHA FAMILIAR

Quando se torna professora (1847), Maria Firmina dos Reis se recusa a desfilar nas costas de escravizados sobre um palanque em São Luís, no Maranhão. A professora argumenta que eles não eram bichos para carregarem pessoas neles montadas. A posição social alcançada com o magistério contribui para que ela publique seu primeiro livro, Úrsula (1859). Logo se seguiram o romance Gupeva (1861), o poemário Cantos à Beira-mar (1871) e o conto A Escrava (1887). 

Aposentada do ensino público (1881), Maria Firmina funda a primeira escola mista (gratuita) do Brasil, o que escandaliza os círculos locais em Maçaricó. Depois de dois anos e meio de aulas para filhos e filhas de lavradores e de fazendeiros do povoado, impôs-se a ela o fechamento da escola. Diliquinha, seu apelido familiar, escreve para vários jornais, tais como A Verdadeira Marmota, Semanário Maranhense, O Domingo, O País, Federalista e O Jardim dos Maranhenses. No campo da música, ela se destaca com as composições Hino da Libertação dos Escravos e Hino à Mocidade.

Nascida em 11 de outubro de 1825, na ilha de São Luís, filha de mãe considerada branca e de pai Negro, ainda criança Maria Firmina se transfere, com a família, para a Vila de São José de Guimarães. Mas parte de sua vida ela passa na casa de uma tia materna, de melhores condições econômico-raciais, quando então entra em contato com outras referências culturais e com parentes seus ligados à literatura, como Sotero dos Reis.

A trajetória de Maria Firmina dos Reis se assemelha à de muitas mulheres amefricanas contemporâneas, especialmente marcadas pelo abandono do local de nascimento e pela fixação do domicílio em outro, com o objetivo de conquistar melhores condições de vida. Nem sempre amistosos, diálogos com homens e mulheres estranhos ao círculo familiar e racial advertem a escritora de que quase tudo não é como se almeja. Na casa de sua tia rica e branca, Maria Firmina se encontra não apenas com a vida das classes "mais altas", mas também ouve seus segredos íntimos, em posição semelhante às outras mulheres negras que, além de cozinhar, limpar e cuidar, oferecem conselhos "aos seus brancos", tornando-se frequentemente membros honorários dessas famílias - É como se fosse da família!

Também é provável que Maria Firmina tenha descoberto que a posição de privilégio ocupada por eles adviesse não da superioridade racial ou intelectual ou mesmo do estágio superior da humanidade em que eles pudessem se encontrar, mas da exploração sistemática do outro como corpo de trabalho forçado. Se nessa época ainda não tinha se tornado Negra, essa foi uma importante oportunidade.

Tudo isso fez com que, em Úrsula, ela antecipasse quase em 80 anos o Movimento da Negritude. No romance ela repudia uma narrativa heroica da vida escravizada, adotando, antes, uma perspectiva mais crítica das relações sociais. Com isso, vai minando as bases do tempo linear em que se mantém o regime patriarco-escravocrata e o romantismo como sua forma estética.

ELIANE MARQUES

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