quarta-feira, 16 de novembro de 2022


 
MÁRIO CORSO

Tatuagem invisível

A tatuagem auxilia na simbolização de temas. O caso mais evidente mostra-se na relação dos desenhos corporais com o luto. Acompanhei um caso em que a tatuagem de um símbolo do hobby do irmão falecido foi o jeito de aliviar uma melancolia. O que fica na pele pode sair da cabeça.

A leitura dos signos nem sempre é direta, a maior parte é inconsciente e obedece à linguagem onírica. O princípio é similar à pergunta sobre o que você levaria para uma ilha deserta, ou seja, o que é essencial. Qual memória, homenagem ou convicção você traria em seu corpo para sempre?

Dizem que a melhor parte é construir a imagem junto com o tatuador. Um diálogo estético prolongado dá forma poética ao que se quer perenizar. Como essa parte me atraiu, resolvi que era a hora de ter essa experiência.

Como mudo muito de ideia, achei melhor contratar não só o tatuador, mas uma pessoa para portar a tatuagem escolhida. Assim, me livraria tanto da dor como de um resultado insatisfatório. Gastei mais em advogado, para o inusitado contrato de cessão de pele, do que com o profissional da agulha.

No contrato, a tatuagem seria de minha escolha. Porém, na execução, o tatuador ouvia mais o tatuado do que eu. Em resumo, quando olhei para a tatuagem pronta, no peito do contratado, me dei conta de que ela não me pertencia.

Acabei concordando com os amigos que insistem que a dor faz parte e a experiência só vale quando na própria pele. Estava desistindo quando me aconselharam a discretíssima tatuagem invisível. Feita com tinta fluorescente, brilha apenas sob luz especial.

Pensei no que a vida me tatuou, aquilo que já estaria de alguma forma em mim. A resposta veio rápida. Tatuaria o número 174517 no antebraço. Homenagem a Primo Levi, químico italiano que em Auschwitz era identificado por esse número riscado em sua pele. Em É Isto um Homem?, escreveu sobre a morte moral do indivíduo e sobre o inominável. Esse número remete aos ancestrais da minha esposa que sucumbiram ao antissemitismo europeu.

Quando me tornei pai das minhas filhas, entrei em um status etéreo, sem nomeação e permanente - eu não sou judeu, mas elas são judias. Como elas pertencem a uma tradição que não é a minha, por elas tornei-me comprometido com o destino de uma história cultural incrível, um povo sempre perseguido, que até há pouco só tinha os livros como pátria. O destino trouxe-me histórias que não saem da minha pele.

MÁRIO CORSO

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