sábado, 26 de novembro de 2022


26 DE NOVEMBRO DE 2022
CARPINEJAR

A vida cabe em um Fusca

Beatriz iria até a igreja com o clássico Chevrolet Bel Air vermelho e branco, ano 1956. Noivo nunca se preocupa em como chegará a seu casamento. É capaz de aparecer de táxi ou de Uber. Eu não queria isso para mim. Desejava que um amigo me levasse. Um segundo pai. Um irmão de jornada. E também que o veículo tivesse conexão com a minha história.

Lembrei-me do fotógrafo Nauro Júnior e seu Fusca azul-pastel chamado Segundinho, de 1968. Eu aprendi a dirigir num Fusca. Minha primeira saída oficial com habilitação foi dentro de um Fusca, morrendo de nervosismo e aguentando cinco amigos de carona que davam palpite.

Eu sonhava com aquele barulho cardíaco e tranquilizador do motor em meu trajeto até o altar. Seria o encontro da minha emancipação da adolescência com a maturidade do amor. Só que havia um problema. Nauro morava em Pelotas, e o matrimônio aconteceria na terra de minha noiva, Belo Horizonte, na Basílica Nossa Senhora de Lourdes.

Falei para Nauro da minha vontade mais como um capricho do que como algo realmente possível. Não é que o louco disse "sim"? - Vou até aí! Pode me esperar. É o meu presente de casamento.

Com a sua boina, com a sua camisa xadrez por cima da camiseta básica, com a sua barba rala, com o seu sotaque platino, percorreu 4 mil quilômetros por mim (ida e volta), dirigindo por nove dias de forma ininterrupta, para andar apenas oito quarteirões da capital mineira.

Não reclamou do cansaço, não cobrou gasolina, não estabeleceu nenhuma exigência. Não falou que o motor fundiu em Pouso Alegre e que teve que ressuscitá-lo numa oficina mecânica às margens da estrada, obrigado a pernoitar na Fernão Dias. Não me repassou nenhum problema ou adversidade. Não se envaideceu com o heroísmo do sacrifício.

Foi uma prova de lealdade silenciosa, como deve ser toda manifestação de mais pura da amizade. Essa é uma das peripécias do livro A Vida Cabe em um Fusca (www.expedicaofuscamerica.com.br), que Nauro Júnior acaba de publicar pelo seu selo Satolep Press. Sua carona foi terapêutica para aplacar a minha ansiedade. Eu sempre dizia que casar no religioso era para a existência inteira - tanto que entrei na basílica de bengala, assumindo o voto de envelhecer junto.

Nauro sabia da seriedade da minha decisão, percebia que eu havia escolhido uma parceira da alegria e da tristeza, e me apoiou incondicionalmente. Além de ser um excelente narrador, Nauro é um pescador: puxa a melhor versão do outro no oceano das palavras.

Ele não me lançou piadas terroristas, perguntando se eu tinha certeza ou avisando que havia tempo para fugir. Pelo contrário, rimos muito na véspera do casório porque ele exaltou a minha coragem de ser feliz. Ainda tive a chance de trocar as marchas na reta final do percurso.

Na chuva de arroz, não pude deixar de desferir um olhar irônico para Beatriz quando notei que o Fusca fez mais sucesso entre os convidados do que seu possante, charmoso e caro Bel Air. Já estávamos nos provocando, portanto já estávamos casados.

CARPINEJAR

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