sábado, 4 de abril de 2015


04 de abril de 2015 | N° 18122
CLÁUDIA LAITANO

Judas

A Malhação de Judas, ritual do Sábado de Aleluia que consiste em destruir bonecos revestidos da representação terrena do Mal Absoluto, assombrou os finais de semana de Páscoa da minha infância. Para uma menina urbana, criada em apartamento e sem muitos motivos para odiar qualquer coisa como aquelas pessoas pareciam odiar Judas ou outras figuras menos bíblicas, as imagens no Jornal Nacional de bonecos incendiados, enforcados, ou abatidos no chão a pontapés e pauladas, acabavam sendo, elas mesmas, a própria encarnação do Mal Absoluto como eu seria capaz de imaginá-lo aos cinco ou seis anos de idade.

Trazida para a América Latina por portugueses e espanhóis, a tradição da Malhação de Judas está incorporada aos costumes de povos de quase todas as partes do mundo e possivelmente deriva de ritos pagãos de época de colheita. Muito antes da Era Cristã, os bonecos queimados representavam todos os espíritos malignos – e os espíritos malignos nada mais eram do que tudo o que poderia dar errado, de gafanhotos a terremotos.

Não é de se espantar que uma festa de vingança e expiação tenha sido acolhida com tanto entusiasmo em tantos lugares diferentes. Poucas coisas são tão viscerais e universais quanto o sentimento de vingança. Querer destruir aquilo que nos ameaça, ou aquilo que já nos fez mal, é um instinto que compartilhamos com abelhas e leões – assim como o medo.

Felizmente, por um acaso evolutivo pelo qual nunca seremos suficientemente gratos, a espécie humana desenvolveu a capacidade de ir além das abelhas e dos leões, pelo menos no quesito moralidade. Algumas centenas de séculos de civilização nos ensinaram que pensar com o fígado não é a melhor opção em termos de coesão social.

Malhar o inimigo pode parecer uma boa e eficiente solução para aliviar a raiva, mas reações muito rápidas costumam ser injustas e mesmo cruéis – e por essa razão inventamos a Justiça e seus lentos rituais. Não apenas para julgar, punir e livrar-nos da ameaça do Mal Absoluto, mas também para evitar injustiças e oferecer a possibilidade de uma segunda chance para todos aqueles que erram.

À luz das estatísticas (segundo dados do Unicef, dos 21 milhões de adolescentes do país, menos de 0,1% já matou, e, dos cerca de 50 mil homicídios que são anualmente cometidos no Brasil, 1% tem autores com menos de 18 anos) e das condições do nosso sistema penal (70% dos que saem da prisão reincidem no crime), o debate sobre a redução da maioridade penal parece menos uma questão de Justiça ou de segurança pública do que uma capitulação a sentimentos como medo e desejo de vingança.


Diminuir para 16 anos a idade penal é uma solução tão mágica para a criminalidade quanto malhar o Judas é capaz de expiar o Mal Absoluto do mundo – e, como na festa grotesca que assombrava a minha infância, sempre corremos o risco de sermos ainda mais sádicos do que os demônios que julgamos combater.