sábado, 20 de dezembro de 2014


21 de dezembro de 2014 | N° 18020
ANTONIO PRATA

Araminhos

Um dia, na quarta série, ao lado da cantina, o Douglas me contou uma piada. Vou resumir, porque o espaço é curto e a piada é péssima. Os americanos estavam construindo um super caça e tinham um problema: nos testes, a asa sempre quebrava, no mesmo lugar. Os melhores engenheiros da NASA foram chamados. Mexeram no projeto, usaram aço, titânio, até diamante: nada resolvia.

Então um servente que varria o hangar sugeriu fazerem vários furinhos no lugar em que a asa costumava quebrar. Os furos foram feitos. A asa não quebrou. Quando perguntaram pro cara de onde havia tirado aquela solução bizarra, ele respondeu: “Simples, é a velha lógica do papel higiênico: nunca rasga na linha picotada”.

Pois é, eu avisei que a piada era péssima. Eu já achei péssima na quarta série e continuo achando péssima, hoje. Por que, então, Jesus amado, guardo essa tralha na memória, por tantos anos? Não foi um momento marcante. O Douglas nem era muito meu amigo. Não me tornei engenheiro, brigadeiro ou fabricante de papéis higiênicos. De tempos em tempos, contudo, a cena é reexibida na tela da consciência, como um desses filmes mala que reprisam todo ano, desde 1988, na Sessão da Tarde.

Ontem, procurando o saca-rolhas numa gaveta da cozinha, lembrei de novo da piada. É que encontrei, entre facas, escumadeiras e abridores de lata, um desses araminhos de fechar pão. Eu não guardei o araminho na gaveta. Minha mulher também não. Ou seja: ele deve ter caído ali um dia e, como ninguém jamais se preocupou em tirá-lo, foi ficando. A piada do Douglas é como esse araminho, pensei. Minha cabeça é uma gaveta cheia de araminhos.

Na primeira série eu tinha um estojo jeans, com zíper. Durante as aulas, eu ficava mordendo o zíper. Depois de um tempo, sentia os dentes meio que latejando. Pareciam imantados. Alguns anos mais tarde, fui a uma praia em Ubatuba, a areia estava coberta de sargaço e o cheiro (metálico?) daquelas algas fez com que eu sentisse nos dentes o mesmo latejar. De vez em quando topo com uma praia cheia de sargaços, sinto os dentes meio que latejando, resmungo, mentalmente, “ah lá o negócio do zíper”, depois me esqueço.

A minha amiga Letícia detesta peixe. Odeia tanto que chega a sentir gosto de peixe em alimentos nada piscosos. Biscoitos de polvilho, por exemplo. É raro, mas acontece. Faz 10 anos, desde que ela me contou dessa alucinação gustativa, que sempre que eu como biscoito de polvilho, lembro da Letícia e da história do peixe. Gosto da Letícia. Lembrar dela não é ruim. Mas ser obrigado a rememorar a história sempre que como um biscoito de polvilho me parece um desvio desnecessário, um pedágio mental que sou obrigado a pagar.


Qual o sentido dessas três insignificâncias, dessas três caspinhas mentais que, pela primeira vez, espano da minha cabeça e faço pousarem na folha do jornal? Não tenho a menor ideia. Desconfio, aliás, que não haja sentido algum – eu, que sou viciado em sentido, que acredito que tudo tem um porquê e um como e um pra onde. Freud, Darwin, os genes, a ressonância magnética e a semiótica: eles explicam as facas, as escumadeiras e abridores de lata, na gaveta, mas e os araminhos? Por que, Jesus amado, guardo essa tralha na memória, por tantos anos?