sábado, 27 de dezembro de 2014


27 de dezembro de 2014 | N° 18025
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

A VERDADEIRA GRATIDÃO É SILENCIOSA

Generosidade e gratidão só parecem plenas quando se bastam no silêncio. Seguindo a linha de Millôr, que desconfiava do idealista que enriquecera com seu ideal, arrisco-me a depreciar os beneméritos que exigem bandas e fogos de artifício para a cerimônia do reconhecimento por algum gesto ou doação que provocou em alguém a obrigação de agradecer.

A satisfação interior de fazer o bem sem visar vantagem adicional devia ser provedora da gratificação suficiente em si mesma.

De todos os profissionais, os médicos são os que mais convivem com os extremos da gratidão. Seja aquela ruidosa e exagerada diante de um resultado bom, mas previsível, seja o desmerecimento injusto quando não correspondem à expectativa da família, não importando o quanto se esforçaram, nem quão fantasiosa tenha sido a expectativa dos envolvidos.

O jovem médico, projeto de pediatra, cumpria seu segundo ano de treinamento no hospital universitário, onde eram atendidas dezenas de casos graves todos os dias. No fim de uma manhã, a rotina foi quebrada pelo anúncio aflito do porteiro que entrou no saguão com uma criança desfalecida nos braços, e gritou: “Ela parou de respirar”.

Imediatamente, acorreram todos e iniciaram-se as manobras clássicas de ressuscitação. A parada cardíaca, este vão estreito entre a vida e a morte, sempre provoca muita ansiedade e, quando o paciente é uma criança, é inevitável uma dose de desespero. Não há como saber se essa reação decorre da ameaça a uma vida inocente ou porque ela evoca nossos filhos ou netos.

No meio daquele rebuliço, o residente percebeu que uma mulher, em contida sofreguidão, assistia a tudo, apoiada numa coluna. Depois de uma hora de tentativas inúteis, sem que o coraçãozinho jamais voltasse a bater, o pelotão da emergência desistiu, e a criança foi dada como morta. O grupo médico dispersou, carregando a frustração da perda daquele bebê, mas a rotina frenética os engoliu para que não tivessem chance de remoer a impotência dolorosa.

No final da tarde, concluídas as 12 horas de plantão, nosso jovem atravessou o salão da emergência e saiu pelos fundos do hospital, por meio do pátio, onde as crianças maiores brincavam assistidas pelas voluntárias.

E então, percebeu que, recostada numa árvore, a mesma mulher o aguardava. Foi quando teve certeza que ela era a mãe da criança morta.

Sem que lhe ocorresse nada para dizer, ele a alcançou, colocou a mão no seu ombro e, abraçados, atravessaram o pátio em direção à rua e pararam na calçada.

Chegando lá, ela tomou a mão dele e beijou. Ele, meio sem jeito, e não sabendo o que dizer, tomou a mão dela e beijou de volta. Então, separaram-se. Ele foi para a esquerda em direção ao estacionamento, e ela, para a direita, rumo ao ponto do ônibus.

Não falaram nada, mas ninguém sentiu falta de palavras. Nunca um silêncio tinha sido tão eloquente.


J. J. Camargo é cirurgião torácico e diretor do Centro de Transplantes da Santa Casa de Porto Alegre jjcamargo.vida@gmail.com