sábado, 5 de maio de 2018



05 DE MAIO DE 2018
J.J. CAMARGO


Morrer no inverno

Herculano era um homem do pampa, onde nasceu e viveu como um solitário

Era um dia muito frio de agosto, quando o Herculano internou, vindo da Fronteira, emagrecido, escarrando sangue, com um grande tumor no pulmão e uma longa história de fumo, que ele considerava irrelevante porque nunca fumara "cigarro feito" - o que, no imaginário dele, o inocentava de culpa por essa coisa que, segundo o seu médico, estava plantada no seu peito, pontuda como uma acusação.

Era um homem do pampa, onde nasceu e viveu como um solitário, apaixonado pelas lides campeiras, atrás das quais percorreu o Estado e, com frequência, cruzou a fronteira em busca de trabalho algumas vezes, mas muitas mais à cata das emoções contagiantes das provas gaudérias em que cotejavam morfologia, função, destreza, coragem e força do conjunto potro/ginete, como se fossem um monobloco de habilidade, beleza e harmonia. O jeito de acariciar o pescoço do pingo ao final de cada prova revelava uma cumplicidade que em muito superava a relação rotineira entre animais de quaisquer espécies.

Quando eu quis saber da sua família, foi meio esquivo. Falou da dificuldade de criar raízes e de se sujeitar a elas. E crias achava que não tinha, mas não colocava tanta certeza nisso, porque sabe como é. E eu não sabia se devia dizer que sabia.

Na enfermaria de seis leitos do antigo Pavilhão Pereira Filho, ocupava uma janela onde apoiava os cotovelos e, entre um e outro mate, olhava por cima dos cinamomos sem entender que se permitisse uma parede de casas empilhadas atravancando o caminho do horizonte. Terminada a sessão dos suspiros, guardava a cuia e a garrafa térmica numa sacola de couro cru.

Um dia, o surpreendi dobrando com carinho uma manta azul marinho de lã muito delicada. Brinquei perguntando de qual namorada tinha ganho aquele mimo e levei um susto com a reação: ele escorreu o olho para me contar que a Mireya era a prenda mais linda do Uruguai e que ela pedira que ficasse, e ele dissera que não. Então, a chica lhe presenteara com a tal manta para que lembrasse dela nos dias de frio, como se calor fosse ameaça de esquecimento.

Tinha demorado 10 anos para criar coragem e voltar a Paysandu e, então, descobrir que sua amada tinha se mudado para Montevidéu e ninguém mais sabia dela. Uma semana depois dessa desilusão, escarrara sangue pela primeira vez. Tinha pensado em procurar um médico, mas depois desistira, convencido de que sangrava de pura tristeza, e que, se não parava, era porque não conseguiria esquecê-la, e aí tanto fazia.

Provavelmente, a combinação de pena dele e a incapacidade de ajudá-lo pelo avançado do tumor aproximou-nos, e muito aprendi com sua rudeza inteligente e seu pensamento vertical de muitas verdades e raras dúvidas. Um dia, me confessou que achava que estava morrendo porque, mesmo criado no rigor do pampa, nunca sentira tanto frio. Nunca soube de nenhuma visita, e morreu sozinho num feriado de 7 de setembro, em que viajei. Um parceiro de enfermaria que saíra na mesma semana me procurou dias depois para cumprir uma promessa que fizera ao amigo.

Uma bolsa de pano envolvia a sacola de couro cru e um grande H gravado a ferro quente na tampa da bolsa indicava a procedência. Dentro, a cuia, a bomba de bico dourado, a garrafa térmica com tampa cinzenta e, protegida com um celofane, a manta azul. Analfabeto que era, Herculano deixou a mensagem oral, que o amigo colocou num papel grosso para não esquecer e que amarelou do tempo na minha gaveta à espera que eu resgatasse esta história. Dizia, simplesmente: "Tchê, viva bastante, e trate de não morrer no inverno. É muito triste!".

Um dia, ele confessou que achava que estava morrendo porque, mesmo criado no rigor do pampa, nunca sentira tanto frio

J. J. Camargo é cirurgião torácico e membro titular da Academia Nacional de Medicina  - J.J. CAMARGO