sábado, 5 de maio de 2018


05 DE MAIO DE 2018
LYA LUFT

Amor e dor


Subtítulo de um livro meu, recente, em que considerava o quanto somos um país de miseráveis, pois a parcela pobre ou miserável da população é gigantesca, certamente jamais calculada direito, sempre "por cima", no grito, a olho. Nem incluo aqui os miseráveis dos campos e povoados do Norte e Nordeste, ou mesmo Centro, ou por todo o Brasil, sem água potável, sem esgoto, sem casa que se possa chamar assim, morrendo à mingua devido à seca eterna, como o menininho que certa vez citei aqui, que, quando interrogado pelo repórter sobre o que gostaria de comer se pudesse pedir, respondeu com vozinha débil (Lygia Fagundes Telles chamaria "voz de formiguinha debaixo da mesa"): arroz.

Ele não queria sorvete, torta, brigadeiro, creme, fruta, nem mesmo feijão. Se tivesse arroz, estaria contente. Nunca esqueci o menino, o tom de voz, a carinha, e minha profunda vergonha: que país somos, afinal? Diariamente, hora a hora, escuto as quantias trágicas e bizarras, inimagináveis para o brasileiro comum, que se esvaíram do país, isto é, das mãos do povo, de cada um dos miseráveis - e mesmo de nós, os medianinhos -, em propinas, desvios, roubalheira e nem sei quanta indignidade mais.

Diariamente, novos vexames, novos horrores, novos crimes: pois um país que tem tantos miseráveis e tantos bilionários desonestos é, em si, criminoso (ainda que só por omissão, distração ou burrice).

O símbolo disso tudo é para mim, hoje, o edifício incendiado e desmoronado do centro de São Paulo - 24 ou 26 andares, cinco ou oito habitados, quase (tudo informações "mais ou menos") 350 pessoas se a conta é correta, pois muitos com certeza ali dormiam ou moravam e não estavam "cadastrados". Não acredito em apenas quatro desaparecidos. Pode haver muitos cadáveres calcinados nos escombros, mas serão revelados?

Há em São Paulo, segundo a prefeitura, mais uns cem edifícios nas mesmas condições: inseguros, mortais, e ocupados. Só ali no entorno desse desabado, uns oito. Vão-se fazer investigações, vão-se tomar providências. Vão-se nomear comissões e fazer projetos, o que em geral significa ZERO providências concretas. Vergonhoso ver os laudos contraditórios feitos por várias entidades, ONGs (ah, algumas dessas ONGs...), prefeitura, bombeiros, que vão desde "sem maior problema" até "nenhuma segurança". Tudo arquivado ou simplesmente ignorado.

Onde estamos, quem somos? E as falsas ONGs e movimentos (homenageio aqui as verdadeiras ONGS heroicas), que reúnem pobres desamparados e assustados em manadas dizendo-se salvação da pátria, cobram taxas e expulsam quando, segundo relatos, alguém "se recusa a participar de manifestações nas ruas" para ganhar R$ 30, pão com mortadela e suco artificial.

Este país nós somos? Muitos leitores dirão que não têm nada com isso, pagam impostos, ainda ajudam algumas entidades e fazem doações aos pobres - e assim se eximem. Desculpem: enquanto pusermos nas nossas lideranças as raposas velhas ou novas que estão com seus respeitáveis rabos presos em mil investigações de corrupção, somos todos responsáveis por mais essa tragédia brasileira, sobre a qual escrevi, em parte, no Paisagem Brasileira, de 2015, com o subtítulo Amor e Dor pelo Meu País. Os dois sentimentos continuam muito vivos.

LYA LUFT