sábado, 12 de maio de 2018



12 DE MAIO DE 2018
PAULO GLEICH

Filhos ingratos

O desafio de um filho é conseguir frustrar sua mãe, pois deve a ela nada menos do que sua existência

Este domingo é aquele dia especial em que se demonstra toda gratidão e amor àquelas sem as quais nenhum de nós estaria aqui: as mães. Filhos pequenos entregarão cartões e presentes confeccionados para ela na escola, os já crescidos levarão um presente ou, ao menos, sua própria presença - e, dado o caso, os netos! - para um farto almoço ao redor da mesa familiar. Haverá risos, abraços, selfies, tudo emoldurado em palpitantes corações.

Fora do mundo da publicidade e de outras fantasias idílicas, porém, a coisa não é bem assim. As relações entre mães e filhos não são sempre um mar de rosas, sequer um padecimento no paraíso, como se dizia: às vezes, o padecimento é um inferno mesmo. Brigas, desavenças, queixas, desilusões são ingredientes próprios de qualquer relação afetiva, e não teria como ser diferente naquela onde primeiro se experimenta o amor.

Freud nunca disse que a culpa de nossas desgraças é da mãe, mas o que ele, sim, revelou é que levamos para sempre a marca dessa relação primordial cheia de tramas e conflitos. Diferente do que diz a Bíblia, é Eva, não Adão, quem tira um pedaço de seu próprio corpo para gerar uma nova vida. Essa origem tão carnal da vida humana é algo talvez impossível de elaborar totalmente, tanto para mães como para filhos: jamais haverá palavras suficientes para compreender totalmente essa experiência excessivamente real.

Uma queixa frequente entre as mães é a de ingratidão por parte dos filhos. É um sentimento mais ou menos presente e consciente, mas está lá, seja expressado explicitamente ou nas entrelinhas, habilidade na qual as mães são pós-doutoras. E elas não deixam de ter razão: os filhos são realmente uns ingratos, fadados a desapontá-las repetidamente, já desde muito pequenos.

O desafio de um filho é conseguir frustrar sua mãe, pois deve a ela nada menos do que sua existência e sobrevivência. Há as que facilitam essa tarefa por suportar melhor a frustração, lidando como podem com a dor do afastamento. Outras têm mais dificuldades e sempre encontram formas de mantê-lo por perto, seja demandando ostensivamente sua presença, seja com estratégias mais veladas - o que às vezes é ainda mais eficaz. A possibilidade de um filho crescer tem também íntima relação com a capacidade da mãe de deixar-se desiludir.

No melhor dos casos, um filho consegue ser ingrato e rompe com o sentimento de obrigação em corresponder totalmente ao amor materno, e assim parte para descobrir o que há para além do ninho. Não é uma tarefa fácil, sobretudo porque o colo materno às vezes chama de volta com mil cantos de sereia, despertando a nostalgia de tempos em que ela fazia tudo por ele. Mas também é difícil para a mãe deixar de ver em seu filho, mesmo adulto e com grandes conquistas, o pequeno ser que ela gerou e que dela dependeu inteiramente. Algumas chegam a confessá-lo sem pudor: "Para mim, será sempre meu bebê".

Mães que se queixam que seus filhos são ingratos deveriam, por isso, sentir-se muito orgulhosas: fizeram um bom trabalho. Puderam suportar, com mais ou menos dificuldade, que eles não permanecessem devotos a elas e, assim, pudessem deixá-las um pouco de lado para tornar-se adultos. São os filhos que não conseguem jamais ser ingratos os que deveriam ser lamentados: ficam pagando para sempre uma dívida interminável, cujo preço acaba sendo sua própria vida.

Paulo Gleich escreve a cada 15 dias neste espaço. Na próxima semana, leia a coluna de Abrão Slavutzky.

Jornalista e psicanalista, escreve quinzenalmente paulogleich@yahoo.com - PAULO GLEICH