sábado, 19 de maio de 2018


19 DE MAIO DE 2018
DAVID COIMBRA
Prontos para o crime


Eu e meu amigo Plisnou estávamos sem nenhum. Duros. Ou, como se dizia na época, Durangos Kids. Trabalhávamos, ambos, na sucursal do Diário Catarinense em Criciúma, o degas aqui como repórter, ele como laboratorista, profissão hoje extinta como os pássaros dodôs. Dividíamos um apartamento de três quartos com a Nádia Couto, nossa colega de jornal.

Ocorre que fervia e bramia o fim de semana, a Nádia tinha ido a Porto Alegre e, como já disse, nós não tínhamos nem para comprar um xis sem ovo - o salário só sairia na segunda. E agora? Fazia calor, as mulheres ondulavam dentro de minissaias sumárias, as cervejas estavam branquinhas de tão geladas e nós naquela ânsia de viver que queima os ventrículos de quem tem 20 anos de idade.

- Quem sabe nós vendemos alguma coisa aqui de casa? - sugeri ao Plisnou.   

Mas vender o quê? Nosso apartamento era espartano, eu dormia em um colchonete, o sofá havia sido doado por uma amiga, a geladeira e o fogão eram usados e nós ainda pagávamos as prestações.

- E aquele negócio ali? - apontou o Plisnou.   

O "negócio" era uma escultura que um artista plástico local, o Edi Balod, havia dado de presente à Nádia. O Edi é bem conhecido na região. De fato, aquilo devia ser o objeto mais valioso do nosso apartamento, certamente daria para financiar suntuosos jantares e festas históricas.

- Vamos vender! - concordei, entusiasmado, para, um segundo depois, ser acometido por um pequeno drama de consciência: - O que vamos dizer para a Nádia? É que a Nádia adorava aquela escultura. Era o orgulho dela. Alguém chegava ao apartamento e ela corria para mostrar:  

- Olha. Foi o Edi Balod quem fez! Mas, ao mesmo tempo, não era justo nós dois, seus colegas de trabalho e de apartamento, seus amigões do peito, praticamente irmãos, não era justo nós passarmos tantas privações, tendo à mão um objeto de função apenas decorativa que poderia nos tirar das dificuldades. - Além disso, esse negócio é meio nosso também - argumentou o Plisnou. - Acho que é... E tem mais - acrescentei. - Poucas coisas são mais importantes do que cerveja gelada e amigos para dar risada! - Isso! - exclamou o Plisnou. - A Nádia concordaria com isso! - Até rima!

- Rima! "Cerveja gelada e amigos para dar risada"! Assim, estancamos rapidamente nossos derrames morais e passamos os minutos seguintes debatendo a respeito da justificativa que apresentaríamos quando a Nádia voltasse. Teria de ser algo muito verossímil.


Não lembro que desculpa inventamos, lembro da dúvida posterior: onde arranjaríamos um comprador? Repare como as coisas não são tão fáceis no mundo do crime.   

Após mais alguns minutos de ponderações, decidimos levar a obra até a praça, onde a colocaríamos à venda. O plano já estava todo traçado, a falcatrua seria realmente cometida, quando o nosso amigo Nei Manique, o chefe da sucursal, bateu à porta do apartamento. - O Edi Balod está convidando vocês para uma mariscada na casa dele - anunciou o Nei, sem nem dar bons dias.  

Nos entreolhamos, admirados, eu e o Plisnou. Era muita coincidência o Edi Balod aparecer para nos salvar e, ao mesmo tempo, salvar sua obra de nossas garras ávidas. Agora poderíamos nos divertir sem precisar delinquir.

E foi mesmo um jantar suntuoso e foi mesmo uma festa histórica. Fico feliz ao lembrar desse episódio singelo por lembrar, também, que nós nos sentíamos tão felizes na época... É que éramos jovens. Sabíamos que tudo estava por ser feito nas nossas vidas e não levávamos nada a sério: nem o dinheiro, nem o sucesso, nem a nós mesmos.   

Não somos mais jovens agora. Decerto que temos muito mais compromissos, mais cabelos brancos, mais gordurinhas localizadas e até um pouco mais de dinheiro. Mas há algo daquele tempo que não mudou: continuo não levando a vida a sério. Continuo pensando que poucas coisas são mais importantes do que cerveja gelada e amigos para dar risada. Se vendêssemos aquela escultura, até a Nádia pensaria assim. Não pensaria?

DAVID COIMBRA