quarta-feira, 16 de maio de 2018


16 DE MAIO DE 2018
DAVID COIMBRA

O monstro do Dia das Mães


Um bicho que mata um homem deve morrer, manda uma regra internacional não escrita, mas aceita em toda parte. Parece cruel, porque a fera que mata o homem não o faz por maldade ou gosto, e sim por medo ou fome.

É que nós, Homo sapiens, valorizamos muito a vida humana. O que é mais do que agir em causa própria - trata-se de uma imposição do convívio em comunidade. Desde que houve civilização, houve o interdito do assassinato, seja pelo quinto mandamento de Moisés, seja pelo Código de Hamurabi, seja pela tradição oral que atravessa a poeira dos séculos.

Sem a dura repressão ao homicídio, não existe civilização.

A preservação da vida humana está na base da sociedade. De qualquer sociedade, em qualquer tempo. Você pode medir o desenvolvimento e a sofisticação de uma sociedade pelo valor que seus integrantes dão à vida.

O Brasil é o país do mundo em que ocorrem mais assassinatos a cada ano. Dá bem a medida do que é o Brasil - ou no que o Brasil se transformou. Mas poucas vezes a baixeza da sociedade brasileira ficou tão exposta quanto no vídeo daquele assalto em que uma policial à paisana mata um bandido em São Paulo, agora mesmo, no último Dia das Mães.

Se você não viu, resumo: um grupo de crianças e suas mães esperava pela abertura de uma escola no início da manhã de sábado, quando um homem chegou, apontando um revólver para elas, anunciando assalto. Havia uma PM entre as mães. Ela sacou rapidamente sua arma da bolsa e alvejou o bandido no peito três vezes, matando-o.

Deu-se feroz debate acerca da reação da policial. Alguns a criticaram, outros a elogiaram. Falou-se de tudo. Mas ninguém se manifestou a respeito do que o assaltante fez: ele investiu com a arma apontada para mulheres e CRIANÇAS.

Não é algo incomum no Brasil. A todo momento, sabe-se de mães e pais assassinados na frente dos filhos. Mas, desta vez, ficou registrado. Nós todos testemunhamos, pela internet e pela TV, um homem puxar de um revólver e apontar para um grupo de crianças.

Como ele pôde fazer isso? Como pudemos não nos escandalizar com isso?

Criança tem muito a ver com bicho, não é? Criança é inocente. É por essa razão que os personagens da Disney fazem sucesso. Porque as crianças se identificam com ratinhos, patinhos e cachorrinhos. Crianças querem é brincar, além de comer coisas gostosas e dormir quando sentem sono. E nada mais.

Então, porque são inofensivas e indefesas, as crianças têm de ser protegidas pela sociedade. Afinal, elas são a própria vida. Elas são a sobrevivência da comunidade. Mas o nosso país sequer se choca com a cena de crianças sendo ameaçadas por uma arma de fogo.

Há várias teses sobre o mínimo valor que se dá à vida humana no Brasil. Nenhuma explica o que aconteceu em São Paulo, no Dia das Mães.

O que aquele homem queria, em troca, talvez, da vida de uma criança? Um celular? Um punhado de reais?

Isso não acontece por causa da pobreza. Nem pela desigualdade. Nem pela deficiência da educação formal. Isso não acontece devido à corrupção ou à incompetência do governo.

Isso é a decadência moral. É o ponto mais baixo que pode atingir uma sociedade. Não estamos mais formando bandidos, no Brasil. Estamos formando monstros.

DAVID COIMBRA