quinta-feira, 26 de setembro de 2019



26 DE SETEMBRO DE 2019
DAVID COIMBRA

Quando o presidente mandou bombardear São Paulo

Há algo pior do que uma pessoa má: uma pessoa má com medo. Porque o medo, primeiro, faz recuar - a pessoa tenta se proteger. Acuada, ela não suporta a pressão daquele sentimento que a oprime e passa para a etapa seguinte: o ataque. Mas ela é má e, sendo má, será mais do que agressiva; será cruel.

Assim era o presidente Arthur Bernardes: um homem mau que sentia medo. Tinha razões para temer. Os 18 do Forte tentaram derrubá-lo em 1922, em 1923 explodiu a revolução no Rio Grande do Sul e, em 1924, deu-se uma tragédia que o Brasil esqueceu, tanto que é chamada, precisamente, de A Revolução Esquecida. Você pode achar que tudo o que estou contando é irrelevante hoje, mas é o contrário: tem muito a ver com o que acontece hoje, e explicarei por quê.

Bem.

Em 5 de julho de 1924, dia em que se completavam dois anos da marcha suicida dos 18 do Forte, uma revolta muito mais séria eclodiu em São Paulo. A coincidência não se deu por acaso. Os líderes das duas rebeliões eram jovens tenentes representantes da nova classe média brasileira.

Esse ponto é importante: a nova classe média. Naquela época, como agora, a classe média estava descontente com a maneira como o Brasil era governado. Há cem anos, o problema era o revezamento das oligarquias "café com leite" no poder. No caso, mais café do que leite. Os produtores de café eram os donos do país, escolhiam os presidentes e usavam os recursos dos impostos em proveito próprio.

Mas o Brasil já não era mais aquele país tosco dos tempos do império. Havia gente que pensava, e que não pertencia a essa oligarquia, vide a Semana de Arte Moderna de 22. Foi dessa classe, que se sentia espoliada e não representada, que saíram os tenentes.

Hoje não é tão diferente, só é mais sofisticado, há mais atores. A classe média olha para cima e vê banqueiros e empreiteiros beneficiados com financiamentos amigos; olha para baixo e vê a horda do que Marx chamou de lumpesinato assaltando, roubando e matando; olha para os lados e vê funcionários públicos com estabilidade no emprego. Como nos anos 20 do século 20, a classe média sustenta o resto do país e não aguenta mais, só que dela não saíram tenentes, e sim procuradores, juízes e policiais.

Em 1924, os paulistas tiveram mais sucesso do que os cariocas de 1922. Eles tomaram o palácio do governo e colocaram o presidente da província para correr. O mesmo foi feito em cidades do interior, onde revoltosos ocuparam as prefeituras. Assustado, Arthur Bernardes reagiu de imediato: mandou que as Forças Armadas atacassem a cidade sem piedade. Os paulistas arrancaram os paralelepípedos dos leitos das ruas para levantar trincheiras e se armaram com o arsenal do que, na época, era uma espécie de Polícia Militar, mas Bernardes não se intimidou. Tropas federais invadiram as ruas de São Paulo atirando, apoiadas por tanques de guerra, e os bairros foram bombardeados por aviões. Antes de Londres, antes de Dresden, a cidade aberta de São Paulo sofreu bombardeio aéreo, com a diferença de que quem atacava falava a mesma língua de quem era atacado. As bombas mataram mais de 500 pessoas, feriram quase 6 mil e outras 300 mil fugiram da cidade. Grande parte do parque industrial de São Paulo foi destruída. Nada menos do que 2 mil prédios foram postos abaixo.

Depois de três semanas, os rebelados fugiram. Alguns foram presos e levados para o campo de concentração do Oiapoque. Outros se infiltraram pelo interior do país e marcharam ao encontro de outro grupo tenentista que havia se rebelado no Rio Grande do Sul. A junção dessas duas tropas formaria a Coluna Prestes.

Estou apressando a história, há muito para contar. Amanhã, mostrarei como tudo aquilo se reflete no que ocorre hoje. Mas, antes, pense: no Brasil, houve uma guerra civil em que o governo mandou bombardear a maior cidade do país. Você consegue imaginar uma atrocidade dessas? Nós já fizemos coisas terríveis e permitimos que coisas terríveis fossem feitas conosco. Mas não lembramos delas e, assim, corremos o risco de vê-las acontecendo outra vez.

DAVID COIMBRA

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