sexta-feira, 13 de julho de 2018



13 DE JULHO DE 2018
EDUARDO BUENO


Filhos de Putin

Os vivos são sempre e cada vez mais governados? pelos muito vivos.

Se Vladimir Putin tivesse ouvido falar no aforismo cunhado pelo francês Auguste Comte - também autor do lema que tremula, amputado, na bandeira do Brasil: "O amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim" -, o astuto e audaz senhor incontestável de todas as Rússias talvez pensasse em submeter o velho adágio a essa nada sutil alteração.

Não que Putin refute de pronto e de público a máxima comtiana de acordo com a qual "os vivos são sempre e cada vez mais governados pelos mortos" (impressa em bronze e colada ao granito no monumento a Júlio de Castilhos, na Praça da Matriz, bem no coração de Porto Alegre). Pelo contrário: o primeiro ditador russo democraticamente eleito - e com 78% dos votos - parece julgar-se um mix moderno de czar dos velhos tempos (quem sabe Ivan, o Terrível) com déspota da era soviética.

Putin cultua os grandes ícones da autocracia russa (e força comparações deles consigo). E no mundo da pós-verdade, ele de fato se impõe como um híbrido de Pedro, o Grande, com Stálin, o Monstro. Há uma profusão de pôsteres, camisetas, bustos, canecas - e matrioskas, claro - com sua imagem por todos os quiosques e biroscas da Mãe Rússia. Putin caçando ursos, Putin treinando caratê, Putin montado num elefante, Putin de torso nu, de escusos óculos escuros, olhando enigmaticamente para o alto - o céu é o limite.

Com Putin comodamente instalado no Kremlin (de torso nu e óculos escuros?), a Rússia vive sob a égide do que se poderia chamar de "democracia soberana" - com a clara preponderância da "soberania" nessa frágil equação. Uma nação gigante cuja ideologia é um coquetel que mescla o culto à autoridade com a velha burocracia soviética e nacionalismo exacerbado com um "capitalismo camarada", cujo principal lema consiste no direito sagrado de enriquecer em nome do Estado. Tudo temperado por uma azeitona replicante: um autoritarismo digital em proporções nunca vistas. Sim, na Rússia os "rebeldes" hackers estão a serviço do Estado - e até ajudaram a eleger Trump. A Rússia é a pátria-mãe das fake news.

Mas a Rússia é mais do que isso e é mais do que Vladimir Putin, por mais tempo que o "poder do voto" assegure a permanência no poder desse coronel da KGB. A Rússia é um épico escrito por Tolstói e musicado por Tchaikovsky. A Rússia é uma máxima de Gorki, um conto louco de Gogol. A Rússia é lúgubre e é trágica, mas transcende, transforma e encanta. A Rússia é uma epopeia de sombra e luz, de som e fúria, de lava e gelo, numa vastidão de estepes e tundras sem fim. Na Rússia, as vacas e os violinistas voam, como numa ode onírica pintada por Chagall.

Ainda assim, nem tudo na Rússia termina com um estrondo. Às vezes, o fim vem com um suspiro - de melancolia e desilusão. Não com a Rússia, mas com um certo país medíocre. O país que vive simulando faltas. Em plena era do VAR. Mas para o qual chegou a hora de voltar.

EDUARDO BUENO