sábado, 27 de janeiro de 2024


26/01/2024 - 09h00min
Martha Medeiros

Não gosto nem de festa surpresa, imagine de emboscadas ambientais 

Essa é uma história de terror com final feliz. Mas até quando? Claudia foi meu segundo par de olhos, meu segundo par de braços.

Estávamos eu e Claudia Tajes, minha vizinha de página, sentadas na plateia do teatro Renascença, em Porto Alegre, assistindo a Sangue e Pudins, do Luciano Alabarse. Do meio para o fim do espetáculo, o barulho da chuva se intensificou de forma a nos iludir que era um recurso cênico – parecia que em instantes a água deslizaria pelas paredes e entre as poltronas. Faltando 10 minutos para acabar, a iluminação se foi e os atores terminaram a encenação no escuro.

Saímos correndo, nem cumprimentamos Luciano. O saguão do teatro era uma piscina – chovia lá dentro. Eu só queria pegar meu carro no estacionamento e voar para casa, minha filha estava sozinha, sem luz, e já havia mandado mensagens preocupantes sobre o vento e a chuva anormais. Outros motoristas que estavam na plateia não se animaram a atravessar o lago que havia se formado na rua, eu dei a partida e fui em frente com o meu otimismo. 

Cem metros adiante, tudo parado. Congestionamento e blecaute, só enxergávamos os faróis de outros carros igualmente encurralados. Sinaleiras apagadas. O Arroio Dilúvio, que margeia a Avenida Ipiranga, apresentava um volume crescente, quase invadindo o asfalto. Precisávamos sair dali.

Claudia foi meu segundo par de olhos, meu segundo par de braços. Eu, sozinha atrás do volante, não dava conta. Abrimos as janelas, pedimos passagem, mas era difícil contar com a boa vontade de quem também estava em apuros. As dúvidas transbordavam: seguimos reto? Dobramos? Por fim, alcançamos a Av. Princesa Isabel e, claro, muita água na pista nos aguardava.

Nunca senti tanto medo. Minha boca secou. Sabe aquela pessoa que reage com calma na hora do pânico? Não sou eu. Fico apatetada, volto a ser criança, quero um pai em meio a uma tempestade. Mas estávamos órfãs naquela terça à noite, enquanto árvores desabavam ao nosso redor, arrastando os fios de energia. 

A cada vez que atravessava um alagamento, com água batendo na porta, eu implorava ao carro: não apaga, não apaga. Quando passamos em frente a um hotel, nem foi preciso entrar em acordo. Era uma ilha. Claudia e eu dividimos a mesma cama, ainda no escuro, depois de consumirmos todas as garrafinhas d´água do frigobar. Às seis da manhã, voltamos cada uma para sua casa.

Essa é uma história de terror com final feliz. Mas até quando? A natureza anda mal-humorada, com razão. Vai acontecer de novo. Em Porto Alegre, Rio, BH, São Paulo, Belém. Que os governantes sejam previdentes e tomem decisões que beneficiem o bem-estar da população, em vez de privilegiar terceiros, lucros ou eleições. E que eu aprenda a desenvolver meu sangue frio. Não gosto nem de festa surpresa, imagine de emboscadas ambientais. Nunca estou preparada. Alguém está?

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