29
de setembro de 2012 | N° 17207
CLÁUDIA
LAITANO
Nós, os
endividados
Tenho
um amigo que costuma dizer que sempre termina o dia com a sensação do “dever
comprido” (assim, com “o” mesmo): encrencas para desencrencar, e-mails para
responder, gentilezas a retribuir e, claro, contas a pagar. Tudo isso
acumulando-se em gavetas, reais ou imaginárias, à espera de um despachante organizado
e eficiente para dar conta justamente daquelas tarefas que ninguém pode fazer
por nós.
O
fato de podermos ser cobrados concreta ou figurativamente o tempo todo pelo
celular – inclusive quando estamos de folga ou viajando – torna ainda mais
aguda essa permanente sensação de que não estamos dando conta. Devo, logo
existo.
No
Brasil, a impressão de que sempre estamos devendo alguma coisa para alguém não
é apenas uma abstração metafórica que reflete o ritmo hiperacelerado da vida
nas grandes cidades. Os brasileiros nunca estiveram com o dever tão comprido
como agora. A combinação de alguma folga no orçamento, crédito fácil
(empréstimos são oferecidos na caixa da loja onde você está pagando uma conta
ou mesmo por torpedo no celular) e uma vocação reprimida para o consumismo
transformaram o Brasil em um país de endividados crônicos.
O
curioso é que a dívida nem sempre é percebida com mal-estar pelos próprios
enforcados. O mortífero parcelamento da fatura do cartão de crédito, o cheque
especial, os juros embutidos nas prestações de um eletrodoméstico, tudo do que
os economistas dizem para os consumidores fugirem como cardíaco de gordura
trans foi incorporado ao cotidiano das famílias como se fosse muito natural
esse milagre mensal da multiplicação do salário: entram mil reais de um lado,
saem 5 mil em traquitanas do outro.
Se a
corrupção endêmica denuncia nossa histórica dificuldade para distinguir o
público do privado, o endividamento crônico provavelmente também é a expressão
de algum traço do caráter nacional que estava em modo repouso e se acendeu com
a recente onda de prosperidade do país. No livro O Valor do Amanhã (2005), o
economista Eduardo Giannetti já mostrava como certos aspectos da nossa vida,
muito além do orçamento familiar, operam segundo a lógica do “isto agora ou
aquilo depois?”.
Quando
nos colocamos na posição credora, escolhemos pagar antes e viver depois:
fazendo uma dieta pra caber no biquíni no verão, estudando para passar de ano
ou ganhar um diploma, economizando para uma aposentadoria mais tranquila. Na
posição devedora, vivemos agora e pagamos quando for possível – e é aqui que
entram o cartão de crédito, o cheque especial e todos aqueles pequenos ou
grandes luxos com os quais nos presenteamos de vez em quando simplesmente
porque a gente acha que merece agora e não daqui a pouco.
Algumas
culturas apostam tanto no futuro, que o presente torna-se mais árduo e opaco do
que o necessário. Outras estão tão focadas na recompensa imediata que o futuro
e as contas sempre parecem inesperados quando finalmente chegam – e sempre
chegam.
O
Brasil, que já foi o país do futuro, está se tornando o país do eterno
presente. E das dívidas eternamente acumuladas.