sábado, 27 de setembro de 2014


28 de setembro de 2014 | N° 17936
L.F.VERISSIMO

O mau sentido

“Liberal” é uma palavra traiçoeira. É o adjetivo com que os conservadores americanos xingam a esquerda, ou o que julgam ser a esquerda, no seu país, mas no resto do mundo é o oposto de conservador. A confusão é antiga. Em inglês “liberal” já quis dizer licencioso, ou libertino. Shakespeare descreve alguém como sendo um “liberal villaine”, um vilão liberal, querendo dizer que é um canalha completo. Em todo o mundo, mesmo onde se fala inglês, “neoliberalismo” significa uma nova versão do liberalismo econômico do século 19.

Mas o liberalismo de então se opunha ao mercantilismo e ao poder da elite agrária e do conservadorismo e tinha um sentido progressista. Na sua versão atual, se opõe ao dirigismo do Estado e ao controle da empresa livre e, na sua aversão a qualquer ideia distributivista ou solidarista que atrapalhe os negócios, recupera o sentido shakespeariano da palavra. Mas, para aumentar ainda mais a confusão, muitos dos neoconservadores americanos de hoje têm esse nome porque no passado foram “liberais” progressistas, alguns até trotskistas.

O único regime econômico viável para um neoliberal seria o liberal no mau sentido, na opinião de um liberal no outro sentido. Com o suposto ocaso das ideologias e o fracasso do socialismo real e do capitalismo de Estado, não haveria mais alternativas para a moral do mercado dominar as nossas vidas.

Democracia formal não garante democracia econômica, como o Brasil não nos cansa de ensinar, nem a liberdade de lucrar sem controle ou remorso é a primeira condição para uma democracia funcionar, como insistem os neoliberais. Fala-se no fim das utopias, mas sobreviveu o utopismo mais irracional de todos, segundo o qual pela ganância e o egoísmo exaltados se pode chegar a qualquer ideia de comunidade e justiça.

O neoliberalismo só acredita na sua doutrina porque a mantém apesar de todas as evidências de que também não deu certo, e nos trouxe para esta crise, em que um sistema financeiro hipertrofiado e desregulado ameaça arrastar todo o mundo para o precipício.

LEITURAS

Na Renascença ninguém disse “Oba, estamos na Renascença!”. Vivemos para a frente, mas entendemos para trás e só sabemos o que nos aconteceu “lendo” o passado. E às vezes lendo errado. A gente fala nos loucos anos 20 quando várias liberdades novas começaram a ser experimentadas no rescaldo da I Guerra Mundial e esquece que foi a era que gerou o fascismo e outras formas liberticidas. O espírito da Era do Jazz foi um espírito totalitário: prevaleceram não os passos do Charleston, mas os passos de ganso. Os plácidos e sem graça anos 50 não foram tão aborrecidos assim. Foram os anos do existencialismo, de revoluções na arte e na literatura, do nascimento do rockenrol...


Nos fabulosos anos 60 e 70, enquanto as drogas, o sexo e a comunhão dos jovens pela paz e contra tudo o que era velho tomavam as ruas, o conservadorismo se entrincheirava no poder (Nixon nos Estados Unidos, os generais aqui, Margareth Thatcher e Ronald Reagan já no horizonte) e começava sua própria revolução careta. Quando fizerem a leitura da época atual, qual será a conclusão errada? Que o mundo se tornou mesmo uma aldeia global unida pela técnica ou que se dividiu ainda mais entre ricos e pobres e entre inteligência artificial e fundamentalismos, misticismo e outras formas de atraso? E no Brasil: o que é mesmo que está nos acontecendo?