sábado, 27 de setembro de 2014


28 de setembro de 2014 | N° 17936
ANTONIO PRATA

O agudo e a crônica

Quando eu comecei a escrever crônicas, quinze anos atrás, prometi a mim mesmo que iria revolver somente a terra do meu canteiro, resistindo à tentação de arrastar o meu modesto arado por latifúndios pedregosos como a política, a economia, a crise no Oriente Médio. (Como diz o mestre Humberto Werneck, crônica é conversa sentado no meio-fio, não discurso sobre um caixotinho). 

Todo domingo, porém, questiono minha promessa: o mundo é vil, o país é injusto, há muitas causas importantes sem voz e muitos calhordas com megafones – devo seguir falando da minha infância, de um amigo que reencontrei, dos primeiros passos da minha filha?

Às vezes, em bate-papos com leitores, me perguntam por que eu raramente escrevo sobre o assunto da semana. Digo que a chance de eu ter alguma coisa relevante a dizer sobre o assunto da semana é pequena, ainda mais concorrendo com jornalistas e especialistas que estão debruçados sobre a questão. Serei mais profundo ou divertido, terei, enfim, mais chance de dizer algo verdadeiro (mesmo que pequeno, mas verdadeiro, e é isso que importa) se mirar no que eu conheço: a minha infância, o amigo que reencontrei, os primeiros passos da minha filha.

Também costumam perguntar, nesses bate-papos, se por falar sempre de si mesmo o cronista não seria um autocentrado e, portanto, um alienado. Acho o contrário: o cronista procura nele mesmo (ou melhor, numa ficção de si mesmo) os assuntos que possam tocar os outros. Todo mundo teve infância, todo mundo tem amigos que a vida afastou, mesmo quem não é pai ou mãe sabe o que é uma criança. Se ao falar do meu umbigo eu não cutucar o seu, a relação umbilical da literatura não se estabeleceu: pode escrever pro Painel do Leitor.

Esses questionamentos crônicos me voltam mais agudos nestas eleições. Na quinta retrasada, dia 18, um PM matou um ambulante com um tiro na cabeça. Nesta segunda, o PM foi solto. Não houve manifestações nem indignação por parte da população e Geraldo “quem não reagiu tá vivo” Alckmin, o chefe da PM, deve ser reeleito no primeiro turno. (Sobre o silêncio de São Paulo diante do assassinato, ler Flávio Moura em: http://migre.me/lRQpJ). Naquela mesma quinta, 18, no presídio de Pedrinhas, Maranhão, foi assassinado o décimo sétimo preso, só este ano. Ano passado, foram 60; alguns deles, decapitados diante das câmeras de celulares.

Os senhores feudais que dominam o Maranhão e gerenciam Pedrinhas são da base de apoio da Dilma, que acusa Marina de ser uma proposta insensata por não contar com o apoio de senhores feudais como os que dominam o Maranhão e gerenciam Pedrinhas. Marina, contudo, não é nada insensata: a paladina da nova política apoia quem, em SP? Alckmin.


Devo seguir falando da minha infância, de um amigo que reencontrei, dos primeiros passos da minha filha? Às vezes, acredito que sim: que a crônica existe para iluminar uns rincõezinhos assombreados do cotidiano, pra abrir nossos olhos para a graça que passa despercebida, pelas esquinas – e que isso também é um ato político. Outras vezes, porém, me vejo como um nobre gordo, na França, em 1788, comendo codornas enquanto o povo morre de fome, de bala ou é decapitado do lado de fora e nos calabouços do castelo.