terça-feira, 20 de dezembro de 2016


20 de dezembro de 2016 | N° 18719
LUÍS AUGUSTO FISCHER

JÁ NEM SE LEMBRA


Difícil lembrar outro fim de ano tão ruim e confuso quanto este. No plano pessoal posso sim comparar este medonho final de 2016 com o de 10 anos atrás, quando meu irmãozinho estava saindo de uma complicada cirurgia que apenas protelou sua morte por uns escassos meses; mas no plano coletivo, não encontro paralelo em matéria de falta de esperança, esta virtude, essa ilusão sutil que a cada virada de ano costuma voltar à cena.

Recessão, perda de direitos para o trabalho, engambelação com mesóclises: Temer e seu ministério feito para manter ao máximo o foro privilegiado. O fraco Sartori com seu pacote anti-inteligência e anti-autonomia, propondo exterminar núcleos de ciência, tecnologia e cultura que deveria prestigiar. Na Síria e no Iraque, irmãos nossos vivendo como animais encurralados prestes e morrer sob formas as mais cruéis. O abominável Trump compartilhando o comando do império com as piores raposas.

Em Porto Alegre, uma cidade maltratada, um novo governo, eleito e portanto legítimo, oferece duas boas notícias: não extinguiu a secretaria da Cultura (Sartori já fez isso) e convidou para sua gestão Luciano Alabarse, a quem desejo a melhor sorte (mas com receios grandes quanto ao fôlego que de fato terá), um dos mais capacitados fazedores no campo cultural.

Hora boa de lembrar uma excelente leitura que fiz esses dias: De mim já nem se lembra, de Luiz Ruffato (Cia. das Letras). A armação, que talvez corresponda à verdade dos fatos, é a seguinte: ao começo e ao fim, temos dois capítulos em que o dono da voz narrativa evoca seu falecido irmão, primogênito e recém-formado em tornearia mecânica pelo Senai de Cataguases, que vai para São Paulo, em 1971, fazer a vida. 

E a faz, no miúdo dos dias, como um dos tantos operários que estavam na alma invisível do boom econômico daqueles tempos. No miolo do livro, um conjunto de 50 cartas desse jovem migrante para sua família, dando conta de sua jornada na megalópole, até um fim trágico e pungentemente irônico.

Um livro forte mas discreto; profundo e delicado; um livro capaz de nos transportar para outras dores, de outros tempos, com o coração aceso dessa ilusão, desse sentido transcendente da esperança, que tanta falta tem feito.

Da minha parte, boas festas a homens e mulheres de boa- vontade.