quinta-feira, 29 de dezembro de 2016



29 de dezembro de 2016 | N° 18727 
DAVID COIMBRA

Por que ela tirava a roupa depois do Jornal Nacional?

Depois que minha vizinha tirou toda a roupa e ficou completamente nua, nua de uma nudez fresca e matinal, nua com evidente orgulho de seu corpo em que nada sobrava e nada faltava, em que tudo parecia compacto e, ao mesmo tempo, farto, depois que ela se pôs naquela nudez trombeteante, suas longas pernas a levaram até a janela e seus delgados braços a fecharam num golpe e eu, no edifício em frente, espiando pela persiana, fiquei por um momento paralisado, feliz, sem saber bem em que pensar, sem ligar para o vinho derramado na minha mesa de trabalho, sem ter condições de voltar ao livro que escrevia.

Na verdade, não escrevia. O livro já estava escrito. Ou não. Mais ou menos. Vou explicar.

E agora entro na história paralela às façanhas da minha vizinha, mas que é de importância para você, amigo leitor. Estou falando do livro Diário do Diabo, escrito pelo presidiário Luiz Augusto Félix dos Santos. Ele havia sido preso por todo tipo de crimes, de estupro a assassinato, passando por roubo, assalto e sequestro. Li o prontuário dele, no presídio. Consideravam-no irrecuperável. Mas havia uma assistente social na penitenciária, uma só, para 1,5 mil detentos. E ela o ensinou a ler e a escrever.

Luiz Augusto começou a ler os livros de Sidney Sheldon, entusiasmou-se e decidiu escrever sua própria história. Escreveu-a à mão, com caneta esferográfica, em dois grandes cadernos de espiral. Esses cadernos me foram passados pelo meu amigo Sérgio Lüdtke, que, na época, tinha uma editora de livros. Sérgio propôs que eu transformasse a narrativa obviamente confusa de Luiz Augusto em livro. Foi o que fiz. Tentei preservar a forma como ele contava a história, e acho que consegui. Mas deu um trabalho maior do que se estivesse escrevendo originalmente.

Visitei Luiz Augusto na cadeia. Encontrei uma pessoa... boa. Por Deus. A leitura tinha transformado o diabo que ele mesmo dizia que era em um ser humano confiável.

Luiz Augusto foi, de certa forma, a repetição cabocla de Malcolm X. Preso por arrombamento de casas aqui, em Boston, Malcolm cumpriu 10 anos de reclusão em uma penitenciária de Massachusetts. Nesse tempo, o que mais fez foi ler. Havia uma boa biblioteca na penitenciária e ele bebeu-a quase toda. Saiu de lá transformado. Estava pronto para se tornar quem foi.

Outro que também mudou para melhor na cadeia: Tim Maia. Ele foi preso por roubo nos Estados Unidos. Atrás das grades, convivendo com os negões americanos cheios de malandragem, ele tornou fluente o seu inglês e absorveu o suingue e a manha do soul.

Um terceiro, ainda mais ilustre: Mandela. Antes de ser preso, Mandela achava que poderia salvar seu povo pela violência. Na prisão, compreendeu que o salvaria pela paz. E o salvou.

A prisão pode ser um lugar de regeneração, portanto. Basta que se trate o preso com dignidade. A punição do infrator é o isolamento da sociedade, e ela já é bastante dura. Mais do que isso é crueldade, e a crueldade sempre se volta contra seu autor. Bons presídios não são luxo. São questão de segurança. Da SUA segurança. E é por isso que essa história vicinal à minha vizinha é central para você.

Bons presídios são bons para a sociedade.

A vizinha? Ah, ela dançou durante todas as noites em que escrevi a história de Luiz Augusto. Com uma curiosidade intrigante: tirava a roupa sempre depois do Jornal Nacional. Será que se empolgava com as notícias? Não sei, mas sei que era só o Cid Moreira dizer “boa noite” com sua voz de Velho Testamento e ela ia para a frente do espelho do quarto, fazer strip-tease. Virou regra. Depois de algum tempo, me acostumei. Meus amigos chegavam e eu avisava:

– Olha pela janela agora. A minha vizinha vai tirar a roupa. Eles enlouqueciam. E eu ia para a cozinha, preparar um sanduíche de atum. A rotina tira a cor das melhores fantasias.