quarta-feira, 30 de janeiro de 2019



30 DE JANEIRO DE 2019
PEDRO GONZAGA

OS DESAJUSTADOS

Em algum momento de nossa curta história nesta bola de gás e pedra e rocha líquida, houve um refúgio para os desajustados. Anos atrás, quando o pânico me atacava às noites, fui a um médico em busca de uma explicação puramente física para tantos tremores, suores e o maxilar engripado feito a porta de uma Variant. Num mundo ideal, a medicina devia nos oferecer sempre diagnósticos como estiramento, contratura, lesão por esforço repetitivo, algum mal derribável com Amoxicilina.

Exames na mão, o homem de branco, detrás da barba experiente, com muito tato, sugeriu um transtorno de ansiedade, e me estendeu um cartão com um nome. Não há razão para enfrentar isso sozinho, ele disse. Aborrecia-me ao fim da consulta - vaidoso em meu senso de exclusividade - sofrer de uma doença da moda. Insisti que não havia dessas coisas no tempo do meu avô, devia ser o efeito das mídias sobre nós (culpadas também por nossa solidão, sobrepeso, desilusões amorosas e bancarrotas), ao que ele respondeu que havia, só não havia como entendê-las e tratá-las. Todos somos um pouco desajustados, ele continuou. Ocorre que uma grande parte desses desajustes passa despercebida. Quando comecei, ainda se dizia que um sujeito, em situação semelhante à tua, era excêntrico, hipocondríaco, dado a achaques, enfim, sofria de uma condição, não de uma doença.

Dado a achaques. Eis aí uma expressão maravilhosa, que vira e mexe volta a me visitar.

E então penso no sofrimento daqueles que não sabiam o que eram quando eram, alguns rebeldes, outros relegados a serem tios e tias bizarros, avós silenciosos, gentes a quem as gentes eram repugnantes. No entanto, se tivessem a sorte de serem deixados em paz, sofriam, parece-me, de uma solidão menor do que a nossa.

Porque hoje a excentricidade é combatida mais dentro do que fora das trincheiras. Tudo deve ser catalogado, muitas vezes pelo próprio indivíduo, cassado em seu direito à pura extravagância. Atomize-se e assuma a bandeira da tua luta, combata para ser aceito pelos outros. O discurso social falará em integração, um discurso social cuja superfície é um flamejante sim para todos, mas que não abraça ninguém. Expostos na planície, não temos tempo de entender nossas diferenças, mas devemos alardeá-las. E assim o espaço de exclusão, que antes unificava muitos seres originais, agora uniformiza cada qual em sua diferença.

PEDRO GONZAGA

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