sábado, 21 de dezembro de 2019


21 DE DEZEMBRO DE 2019
FRANCISCO MARSHALL

A ILHA DO AMOR

Os gregos consagravam a Afrodite a ilha de Chipre, onde desde o Neolítico floresciam cultos de divindades femininas, de fertilidade, maternidade e cuidados, e onde chegou, vinda do Oriente, Astarté, deusa do amor e da guerra, herdeira de Ishtar. Nos mitos mais antigos, cantados por Homero e Hesíodo, é em Chipre que Afrodite põe seus esbeltos pés, vinda da espuma do mar, e onde se refugia, entre ninfas que a acolhem e cuidam, as Horas. Em Pafos, linda praia situada na parte ocidental da ilha, ergueu-se com beleza o santuário de Afrodite, destino de muitas peregrinações e cenário de consagração da deusa dos desejos, de festas e de imagens que impeliam todos a celebrar com prazer a soberania do amor.

O amor de Afrodite foi uma seiva cultural que nutriu aos gregos e que chega a nós em doces mitos e imagens, e também por meio da filosofia. Foi Platão, no diálogo O Banquete, quem apontou o duplo aspecto de Afrodite, a Celestial (Urânia) e a Popular (Pandêmia), para examinar os sentidos cósmicos e corpóreos do amor. Como força primordial, Afrodite significa a potência gregária, a força que une, a energia que promove a coesão, a união e a reprodução da vida. 

A força de Eros é também política, aproxima e concilia pessoas e comunidades, faz crescerem potências cooperativas, coesão e força de gotas, que, ao se unirem, formam mananciais que podem inundar a cidade e o universo. É de Afrodite também o dom de seduzir, ou, nos diálogos e debates, persuadir, com graça e no caminho da concórdia. Artistas e poetas sabiam o que simbolizar ao imaginar o triunfo de Afrodite sobre Ares (ou Vênus sobre Marte): a doçura pode e deve superar a violência.

Pandêmia torna-se paixão epidêmica, que dissemina paixões e prazeres, e também, como cantou Safo, aflições e desejos. É Eros, doceamargo, amigo das conquistas e superações. Esta Afrodite enrijece e liberta, é lysímeles - solta-membros. Anda com Dioniso e anima festas com pandeiros, liras e muitas danças. É a Vênus das artes, dos encantos e belezas que seduzem, da poesia de graças que transformam os sentidos e o mundo.

O amor de Cristo e Maria, ético e casto, suplantou o de Afrodite na Antiguidade Tardia e dominou a cultura europeia por muitos séculos. É guiados por Afrodite que poetas e artistas reconstroem as imagens da condição humana desde a Renascença. Amor celestial e passional são faces da mesma experiência, sublime e prazerosa, pensativa e carinhosa, com que Afrodite torna-se Musa, a fonte erótica que renova a cultura. Essa deusa aproxima sem excluir.

Celestial e popular, Afrodite é potência fundamental e necessária. São dela e nossos todos os gestos de amor e cordialidade com que são possíveis a vida e a história. É essa a mensagem do evangelho pagão, para que, em uma era de discórdias e ódio, as potências que unem triunfem e a ilha de Afrodite seja parte de um arquipélago em que se renovam as melhores utopias.

FRANCISCO MARSHALL

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