terça-feira, 24 de dezembro de 2019



24 DE DEZEMBRO DE 2019
CARPINEJAR

Mamãe Noel

Minha mãe foi defensora pública. Logo que ingressou na carreira, na época, Juizado de Menores, viu que aconteceria uma operação chamada carinhosamente de Papai Noel, em dezembro. Ela se animou, pensou que seria um socorro festivo e afetivo às crianças carentes. Imaginou provisões para as famílias necessitadas - pois o ideal é ajudar a família para assim ajudar a criança.

Na hora do patrulhamento, qual o seu choque e mal-estar ao descobrir que se tratava de uma varredura no centro de Porto Alegre para retirar pequenos pedintes das proximidades das lojas e enviá-los para a Febem, agora Fase, para não incomodar nem constranger os consumidores.

Por mais que tenha brigado e discutido, não conseguiu suspender o propósito da truculenta faxina e manutenção das aparências, escondendo as desigualdades nos altos muros das instituições corretivas.

Os oficiais de Justiça fizeram de conta que ela, por ser nova no emprego, não compreendia como a burocracia estatal funcionava. Deram um desconto, quando a sua integridade jamais aceitaria barganha.

Desde lá, sua frustração criou um hábito em casa. Ninguém recebe presente se não esvaziar as próprias gavetas. Antes de ganharmos uma lembrança, temos que ceder roupas e brinquedos para entidades assistenciais. Não há discussão. Em nosso Natal familiar, a campanha do agasalho está assinalada em vermelho. O apego não pode ser maior do que a solidariedade.

Derrubamos cabides, escolhemos o que não mais nos serve, selecionamos conjuntamente o que desencadeará história inédita no corpo do outro.

Respeitávamos o princípio de que tudo o que não é vestido e empregado nos últimos seis meses deveria ser passado adiante. Não usar algo por tanto tempo acabava por provar que não faria falta.

Transformávamos o bem parado dentro do nosso armário em bem ativo na vida de alguém.

Nem sempre a entrega se desdobrava sem resistência. Eu e os irmãos trapaceávamos, ocultando jogos antigos e peças supersticiosas debaixo das camas.

Mas, no momento de egoísmo, em que não pretendia dar coisa alguma naquele ano, tive objetos subtraídos na marra. Minhas lágrimas de birra não a convenciam perto da orfandade real e material de vários lares que já havia visitado no exercício da profissão.

A mãe me explicava depois:

- Seu choro fingido não vale nada, comovente é o sorriso desprevenido de quem recebe a doação.

Somos egoístas com aquilo que guardamos, acostumados a acumular e jamais antever o sofrimento do próximo. Talvez porque interpretamos a mendicância equivocadamente como oportunismo, como se não trabalhar fosse uma opção para aquelas pessoas pedindo moedas e trocos na rua, não uma fatalidade social. Partimos do raciocínio torto de que elas gostam de estar à mercê de favores, de que não é uma humilhação imposta pela ausência de oportunidades, e sim um gesto de pura malandragem.

Natal é empacotar os nossos objetos com igual empreendimento e esforço de uma mudança de residência. A ressalva é que o frete é no coração, uma migração de mentalidade mais do que de endereço.

CARPINEJAR

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