quarta-feira, 25 de agosto de 2021


25 DE AGOSTO DE 2021
DAVID COIMBRA

O alemão que ia ser comido pelos índios

Tenho aqui em casa um livrinho de aparência despretensiosa, mas ideal para dar inveja ao Peninha e a outros amantes da História com agá maiúsculo e dos livros, livros à mancheia, como diria o Castro. Trata-se de Meu Cativeiro entre os Selvagens do Brasil, do alemão Hans Staden. Foi escrito em meados do século 16 e, em 1925, tornou-se a primeira obra publicada pela Companhia Editora Nacional.

Essa editora histórica foi fundada por Monteiro Lobato, que, por sinal, assina a ordenação literária do livro de Staden. A minha edição é daquela época, escrita em português do começo do século 20, tanto que o cativeiro do título é "captiveiro".

A história que Hans Staden relata é mais do que singular; é extraordinária, repleta de lutas, naufrágios e perigos. Mas o mais espetacular ocorre quando ele é capturado pelos índios tupinambá, que o levam para a aldeia a fim de comê-lo.

Escrevo "comê-lo", e é comê-lo mesmo, na acepção literal da palavra. Os tupinambá, como outros tantos indígenas brasileiros, praticavam alegremente o canibalismo.

Então, veja a situação de Staden: ele foi despido e amarrado. Ao chegar à aldeia, os guerreiros o obrigaram a entrar pulando e gritando:

- A vossa comida chegou!

Desagradável.

Mas o alemão acabou não sendo comido, como você deve ter suspeitado, porque, afinal, ele escreveu o livro. Permaneceu por nove meses prisioneiro dos tupinambá, participando inclusive de guerras, vendo outros cativos serem devorados no banquete antropofágico, até que conseguiu a liberdade, voltou para a Europa e compôs esse clássico. Se você gosta de aventuras, tem de ler essa obra-prima.

Monteiro Lobato era um entusiasta desse livro, tanto que o publicou. E fez mais: mais tarde, colocou Hans Staden junto com a turma do Sítio do Pica-Pau Amarelo e apresentou a incrível história do alemão às crianças. Lobato dizia que as aventuras e desventuras de Staden deviam fazer parte do currículo escolar, para que as crianças se afeiçoassem aos primórdios da história do Brasil.

Ele tinha dessas coisas, Monteiro Lobato. Ele não pensava apenas em fazer sucesso ou ganhar dinheiro, ele não pensava apenas em sua própria grandeza, pensava na grandeza do Brasil. Sua editora revolucionou o mercado livreiro, popularizando autores nacionais numa época em que os grandes escritores só publicavam por editores estrangeiros. Seus livros infantis encantaram gerações e foram lidos por mais de 40 milhões de brasileiros. Além disso, Monteiro Lobato foi o mentor intelectual da campanha que criou a Petrobras.

Era um patriota de verdade, Monteiro Lobato, não desse patriotismo vazio, rançoso, populista, que precisa de inimigos internos para se afirmar, mas de um patriotismo construtivo e empreendedor. Dizia ele que um país se faz de homens e livros. Hoje, faltam-nos ambos.

DAVID COIMBRA

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