segunda-feira, 30 de agosto de 2021


30 DE AGOSTO DE 2021
A VIDA É LOKA

A história da sentença criminal com poesia

Com uma poesia emoldurando o relatório de uma sentença, a juíza Karla Aveline, titular do 3º Juizado da Infância e Juventude de Porto Alegre, traduziu por meio da literatura seu entendimento sobre trabalho infantil no narcotráfico. A decisão viralizou - até mesmo o autor dos versos, Sergio Vaz, se manifestou nas redes sociais.

Intitulado A Vida É Loka, o poema (leia abaixo) foi usado para provocar reflexão sobre a ausência de políticas públicas nas comunidades brasileiras. Em um dos trechos, o poeta compara um livro a "uma arma de quase 400 páginas na mão". Em outros, menciona "pílulas de sabedoria", "tráfico de informação" e "umas mina cheirando prosa".

A sentença foi proferida no dia 20, após representação do Ministério Público em desfavor de um adolescente. O órgão imputava a ele a prática de ato infracional análogo ao crime de tráfico de drogas, pedindo a aplicação da medida socioeducativa de internação sem possibilidade de atividades externas. Em audiência, o réu negou a autoria. A juíza - que figurava como substituta na 4ª Vara do Juizado - entendeu que se tratava de um caso de trabalho infantil e julgou improcedente a representação, afastando a aplicação das medidas socioeducativas "a fim de que o adolescente que tem sua força de trabalho explorada pelas organizações criminosas receba a proteção adequada".

Karla sustenta sua posição com base na convenção n° 182 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Segundo a legislação, vigente no Brasil, "a expressão das piores formas de trabalho infantil" compreende "utilização, recrutamento e oferta de criança para atividades ilícitas, particularmente para a produção e tráfico de entorpecentes conforme definidos nos tratados internacionais pertinentes".

- A questão é que esse tema não é debatido, seja no meio jurídico, seja na sociedade. Esbarramos no senso comum de que um adolescente é um traficante, sem olhar o contexto e a ausência de políticas públicas. Esse adolescente não deve ser criminalizado, mas protegido - afirma.

Ela conta que estava no último dia do prazo para fazer a sentença quando teve um "insight":

- Naquele dia, recebi uma música de um amigo. A letra falava sobre contradições, dificuldades de pessoas empobrecidas e o sofrimento dessa juventude. O insight se deu nesse momento, quando lembrei da poesia.

Amante da literatura, ela diz que conheceu o trabalho do poeta há alguns anos, após ter lido uma entrevista dele. Chamou a atenção da magistrada não só a produção literária do autor, mas a atuação dele em bairros periféricos de São Paulo (Vaz é criador de uma cooperativa cultural na capital paulista):

- Percebi o impacto da literatura naquele contexto e isso me marcou. Sem falar que gosto da forma como ele usa a escrita para dialogar com a comunidade e proporcionar reflexão e transformação.

Escravização

À sentença, a juíza acrescentou trechos de sua dissertação de mestrado, apresentada em 2020 na Universidad Pablo de Olavide, em Sevilha, na Espanha. O trabalho - no qual a magistrada tirou nota máxima - fala sobre o que Karla considera um "silenciamento" da magistratura brasileira a respeito do trabalho infantil no narcotráfico, o que estaria, segundo ela, ligado ao perfil dos juízes e juízas do Brasil.

- Nossa magistratura é 80% branca, 60% masculina. Estamos em posições privilegiadas, enquanto esses adolescentes, em sua maioria, são pretos ou pardos. Então, há a continuidade de um projeto colonial, onde nós, brancos, hierarquizamos, inferiorizamos, encarceramos corpos negros. Essa escravização sempre contou com a chancela dos poderes ocupados por pessoas brancas - argumenta.

Segundo ela, a decisão que reconhece o ato infracional análogo ao tráfico como trabalho infantil não tem precedentes em primeiro grau. Em segundo grau, a magistrada lembra que um desembargador do Rio costumava sustentar suas decisões desta forma, mas "era sempre voto vencido". Questionada por que acredita que o uso de uma poesia gerou tanta repercussão, a magistrada explica:

- A nossa língua não é a mesma da maior parte da população. Quando vê um juiz expressando a voz do outro, a comunidade se surpreende. A literatura proporcionou que eu pudesse dialogar com outros mundos, como esse que a gente encarcera.

ROSSANA RUSCHEL

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