sábado, 19 de outubro de 2013


20 de outubro de 2013 | N° 17589
O CÓDIGO DAVID | DAVID COIMBRA

MÚSICAS DA VIDA PARALELAS

 
Era um apartamento no décimo andar, no meu quarto havia uma janela francesa recortando a parede do gesso do teto ao carpete do piso, e por ali entrava a luz da lua e o ar da noite.

Era o meu primeiro fim de semana na cidade.

Viera de Porto Alegre para trabalhar no Diário Catarinense, tinha 22 anos de idade, um colchonete para dormir, um radinho de pilha e um gravador pequeno, de fazer entrevista, e nada mais. Minhas roupas ficavam empilhadas no chão do quarto, encostadas à parede.

Vinte e dois anos de idade, e a excitação de estar começando a vida, e a emoção de ter tanto para viver.

Deitado no colchonete, estiquei o braço e tomei o radinho, que estava no chão. Liguei. E a música evolou-se pelo quarto: a voz rouca de Belchior, cantando Paralelas.

Como é perversa a juventude do meu coração, que só entende o que é cruel, o que é paixão.

Fiquei ali, ouvindo e olhando para a noite azul-escura, sem pensar em nada, sentindo apenas a juventude do meu coração, uma juventude que hoje, tanto tempo depois, inexplicavelmente, talvez ridiculamente, ainda sinto.

VIOLA ENLUARADA

Todas as noites nós íamos ao Maza para tentar derrubar o governo. Bem, é verdade que também íamos lá para beber umas cervejinhas, mas o objetivo, digamos, nobre era acabar com a ditadura. E acho que contribuímos de alguma forma para a volta da democracia, é impossível que os generais não tenham sentido os eflúvios libertários que emanavam da nossa mesa. Eram muitos planos urdidos, muitas ideias de vida nova, de novo país e tudo mais.

Éramos alunos da Famecos e vivíamos uma fase mezzo anarquista, mezzo comunista. Eu, mais anarquista do que comunista. Bom... para falar a verdade, eu era mais coisa nenhuma. Nunca fui doutrinário e detesto a ideia de pertencer a algo com regras de comportamento.

De qualquer forma, era divertida toda aquela rebeldia, sobretudo quando dobrávamos a última esquina da madrugada e começávamos a cantar Viola Enluarada, do Marcos Valle.

Viola Enluarada era uma espécie de hino da sedição com a qual pretendíamos espanar os militares do poder. Cantávamos de dentes rilhados e, no final apoteótico, levantávamos nossos copos de cerveja e abríamos a garganta, fazendo o Maza balançar a cabeça e suspirar detrás do balcão:

“Porta bandeira, capoeira

Desfilando vão cantando:

Liberdaaaaaaaadeeeee!

Liberdaaaaaaaaadeeeeee!”

Ah, estremeçam, generais!

Era uma música que pregava a luta armada, aquela Viola Enluarada. Claro, nenhum de nós tinha sequer canivete e não pretendíamos nem xingar o guardinha da esquina, mas era uma realização clamar ao mundo tacanho e conservador o nosso grito de revolução de mesa de bar:

– Liberdade! Liberdade!

VOCÊ NÃO ENTENDE NADA

A noite de Porto Alegre já foi forte na Getúlio. Lá havia um bar que às segundas-feiras servia carreteiro de graça, desde que o cliente pedisse não sei quantas cervejas.

Pimplus, o bar.

Nós, como éramos muito duros, é óbvio que não se passava uma segunda sem que saltitássemos em alegre bando rumo ao Pimplus. Nós, que digo, era a turma da faculdade mais a da Sulina, onde eu e o Sérgio Ludtke trabalhávamos, mais o pessoal do nosso bloco de Carnaval de Cachoeira do Sul, o Alá-lá-ô.

Tenho a impressão de que o dono do bar não gostava muito de nós, porque ele demorava muito a servir o nosso carreteiro. As outras mesas todas já tinham sido atendidas e nós lá, esperando com a nossa fome antiga. Acho que é porque nós sempre éramos os últimos a sair do bar, os garçons empilhando cadeiras nas mesas e nós ainda bebendo e cantando. Em compensação, e talvez pelo mesmo motivo, o cantor nos adorava. Não lembro como ele se chamava. Ele usava um chapéu coco e bigode.

Ficava contente com a bagunça que fazíamos e sempre nos atendia quando pedíamos alguma música. Mas havia algo que ele fazia que era emocionante e que nos levava a voltar ao bar duas ou três vezes por semana: sempre, eu disse SEMPRE que entrávamos no Pimplus, ele parava a música que estivesse cantando, fosse qual fosse a música, fosse qual fosse o trecho em que estivesse, e começava a cantar:

“Quando eu chego em casa nada

me consola

Você está sempre aflita

Lágrimas nos olhos de cortar cebola

Você é tão bonita...”

E nós, entre sensibilizados e orgulhosos com a homenagem, cantávamos também. Sentávamos na nossa mesa, pedíamos cerveja e cantávamos.

“Eu quero ir embora

Eu quero dar o fora

E quero que você venha comigo!”


Pena que o carreteiro demorasse tanto.