quinta-feira, 24 de outubro de 2013


24 de outubro de 2013 | N° 17593
MARIO CORSO

Não fale com ela

Após muitas pesquisas científicas, pode-se afirmar: os vampiros estão extintos. O que sobrou deles, depois de milênios de convivência, são apenas fiapos ralos de DNA contaminado, desigualmente distribuídos, entre a população normal. A sede de sangue praticamente não se manifesta, mas o chamado da noite se revela em muitos. Esses semiamaldiçoados, entre os quais me incluo, são os insones. Por sorte, já não causamos dano senão a nós mesmos.

Quer mesmo ajudar um insone? Vá dormir e deixe-nos com nossa solidão. Se alguém precisa de uma mão amiga para segurar, não se trata de insônia, nesse caso já foi ultrapassada a fronteira do território do pânico. A insônia é um pânico júnior, modalidade menor, peso-pena das ansiedades, mas nem por isso menos daninha. O insone experiente sabe que a boa vontade alheia de nada adianta, e a boa alma será mais um zumbi no dia seguinte. Ciente da impotência, resigna-se e dispensa acompanhantes.

O problema maior são as primeiras manifestações, quando ainda não dominamos os mecanismos da herança funesta, e acreditamos que a insônia nos sussurra segredos benéficos. O neófito imagina viver uma hiperlucidez, finalmente teria entendido seus problemas. Que nada, a insônia é um estado terceiro, nem acordado nem desperto, mas guarda um pouco dos dois: a lógica aguçada da vigília e o exagero alucinado dos sonhos, temperado com angústia dos pesadelos. Toda experiência com ela nos parece maior, desesperada, grandiloquente. Mas tão logo a madrugada desponta, os fantasmas se dissipam.

Claro que é necessário pensar sobre o que nos ocorre quando estamos insones, mas nunca enquanto acontece. Devemos tratá-la como o mofo, examiná-la sob a luz bactericida do sol.

Por sua natureza híbrida, é impossível fazer algo útil, para tanto seria preciso estar desperto. Na essência, a insônia é desperdício: impossível fazer qualquer coisa, impossível descansar. Ela é totalitarista, quer que tenhamos olhos só para ela, não nos partilha. Para melhor nos possuir, sádica que é, ela quer que pensemos nela quando não temos cérebro para tanto, o que nos arrasta para um descaminho de tormentos.

A forma de combatê-la é o descrédito. É saber que nada do que pensamos enquanto ela dança conosco tem o tamanho que vemos. Não estamos diante de verdades e revelações. Se não caímos na armadilha de filosofar sobre a vida nesse estado alterado e enfraquecido de consciência, seus poderes diminuem. Em resumo: não faça DR com a insônia.


Um última dica, embora saiba que é indelicado negar qualquer coisa a uma dama: ela pedirá álcool, cigarros e café, e vai insistir. Seja firme, negue categoricamente. Se você resistir, ela irá embora antes para saciar seu vício em outra freguesia.