sábado, 30 de novembro de 2013


01 de dezembro de 2013 | N° 17631
O CÓDIGO DAVID | DAVID COIMBRA

HOMENS QUE POUCO FALAM


Não lembro quando conheci o Vitorinho. Lembro que uma noite ele surgiu na nossa mesa, no bar, e que lá ficou, em silêncio. Na noite seguinte, lá estava o Vitorinho de novo, quieto. E a terceira noite, aí sim, ele a atravessou totalmente calado. Esse é o jeito do Vitorinho. Silencioso, quieto e calado.

Acostumei-me com a presença discreta do Vitorinho na mesa do bar. Estou acostumado com pessoas que não falam em mesas de bar. Tem um amigo meu, cujo nome não declinarei, porque as pessoas são muito suscetíveis, pois tem um amigo meu que fazia o seguinte: todas as noites ele ia com a namorada ao mesmo bar, sentavam-se à mesma mesa, nas mesmas cadeiras, colocavam uma garrafa de cerveja e dois copos entre eles e ficavam quietos.

Não falavam nada, não se tocavam, nem sequer se olhavam. Só bebiam cerveja. Varavam madrugadas no bar, sempre fazendo o mesmo: nada. Ou, melhor: bebendo, apenas. Achava que aquela fosse uma relação muito especial, construída por silêncios significativos, mantida por silêncios consensuais. Mas um dia eles terminaram.

Meu amigo arrumou outra namorada e, também com essa, ele ia ao mesmo bar, sentava-se à mesma mesa e passava a noite inteira em silêncio. Só que com a nova namorada um dia o relacionamento igualmente acabou. Ele conseguiu uma terceira e... adivinhe! O mesmo bar, a mesma mesa, as mesmas cadeiras, a mesma cerveja, o mesmo silêncio.

Esse meu amigo, será que ele tinha sorte e competência para descobrir mulheres que gostassem das mesmas coisas que ele? Ou será que as mulheres são generosas e compreensivas e se adaptam aos hábitos dele para agradá-lo? Ou será que... Não importa. É um enigma. Pessoas silenciosas são enigmáticas.

O Vitorinho parecia-me enigmático. Até que comecei a reparar que, na verdade, ele respeita demais as pessoas. Se ele está falando algo e alguém interrompe, o Vitorinho não protesta, nem manifesta revolta; simplesmente para de falar. E não retoma a sua história, porque logo outro já dá a sua opinião e outro fala de outro assunto e outro interrompe também e um quarto assunto desaba na mesa, espalhando o sanduíche aberto para todo lado, e o garçom chega com os chopes e o assunto do Vitorinho se perde em seu silêncio.

Gostaria de saber o que o Vitorinho ia falar.

Queria que o Vitorinho tivesse conhecido o meu amigo Ricardo Carle. O Ricardo Carle também era dado a silêncios. Um dia sentou-se à nossa mesa alguém muito falante. O Ricardo Carle uma hora se irritou e rugiu:

– Nós viemos aqui pra beber!

Mas, ao contrário do Vitorinho, o Ricardo Carle esperava ser ouvido, quando falava. Exigia, até. Eu achava justo. Os silêncios dele valorizavam sua fala.

A vida é assim. O que vem fácil, vai fácil. Ela ama fácil, desama fácil. Você ganha dinheiro fácil, gasta fácil. Quem fala muito, pouco tem a dizer.

Eu não tenho muito a dizer, por isso às vezes falo bastante, mas às vezes nem tanto.

Já o Vitorinho, esse sim, teria muito a dizer, se o ouvissem na mesa do bar. Me disseram que o Vitorinho era craque no futebol. Olho para ele e desconfio: será? Nunca vi o Vitorinho contando vantagem a respeito. Mas sei que o Vitorinho foi campeão gaúcho de golfe, esse é um dado concreto. E, outro dado concreto, foi campeão brasileiro de tênis. E o Vitorinho é arquiteto dos bons.

E é filho do grande Vitorio Gheno, de quem tenho alguns quadros aqui em casa e os mostro com orgulho a todo mundo que chega. Finalmente, descobri que o Vitorinho também pinta muito. Você duvida? Não pergunte a ele na mesa do bar. Vá a sua exposição de aquarelas das casas mais antigas do Moinhos de Vento, no Hotel Laghetto, até 20 de dezembro. São quadros lindos. Que falam o que o Vitorinho tem a falar.

Homem que pouco bebe

O Lauro Quadros toma um chope por semana. Um único chope a cada sete dias. O Lauro Quadros cuida com desvelo da saúde. Então, nada de excessos. Um copo de chope. Nada mais.

Eu, que ingiro (gosto de escrever ingiro) dezenas, talvez centenas de copos de chope por semana, confesso ter ficado compadecido. Um chopinho só, coitado do Lauro. Mas, depois, refleti um pouco mais sobre este copo solitário. Fiquei imaginando a expectativa do Lauro em relação ao seu copo de chope. No domingo, ele suspira:

– Ainda faltam cinco dias...

Na segunda-feira, se chove, o Lauro vai fazer sua caminhada sob o teto do shopping, que é o que ele faz quando chove, e, ao passar veloz pela praça de alimentação, ele lembra:

– Sexta-feira... Sexta-feira...

Assim o Lauro atravessa a semana, pisando macio em reticências.

Até que chega a sexta-feira.

O Lauro abre os olhos de manhã bem cedo, mira o gesso do teto e sussurra, de si para si:

– Hoje é o dia...

Desabotoa o pijama com parcimônia, tira a redinha do cabelo, alonga o pescoço para um lado e para outro, estrala os dedos e repete, com dentes rilhados de fera feroz:

– Hoje é o dia!

Ao chegar à Rádio Gaúcha, o Lauro está mais radiante do que nunca. O programa Polêmica só faz polêmicas suaves, no Sala o Lauro acaricia o ombro do Kenny, ao voltar para casa ele leva junto um sorriso. Até que chega a hora do chope. O Lauro senta-se à mesa do bar e grita, vitorioso:

– Garçom, traga UM chope.

O chope chega. Dourado. Cremoso. Irresponsavelmente gelado. O Lauro levanta o copo à altura dos olhos, percorre cada centímetro com olhar de amante guloso. Leva-o aos lábios.


E sente o primeiro gole rolando-lhe garganta abaixo, abaixando-lhe a temperatura interna do corpo, esfriando-lhe dos males da semana, fazendo-o feliz como estivesse dando primeiro beijo na mulher amada. Essa é a vantagem do único copo semanal do Lauro. São sempre primeiros beijos, de todos, os beijos mais doces; nunca são o último beijo, quase sempre, o beijo mais amargo.