sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017



10 de fevereiro de 2017 | N° 18765 
DAVID COIMBRA

No torno, aos 10 anos de idade

O velho sapateiro Walter, aliás meu avô, tinha 10 anos de idade quando seu dedo indicador direito foi esmagado pelo torno de uma fábrica de sapatos, em Novo Hamburgo.

Ele não estava brincando no torno; estava trabalhando. O chefe o tirou da linha de produção, enrolou o dedo com um pano e o mandou para casa. O dedo do meu avô ficou torto para o resto da vida.

Uma vez, ele, que não era de vaidades, me disse que queria muito poder usar um anel. Perguntei-lhe:

– E por que não compra um, vô? Ele me mostrou o dedo em garra:

– E como vou usar um anel numa mão como essa? Era a sua segunda frustração. A primeira foi não ter conseguido estudar. Meu avô não completou a terceira série do primário. Mas lia sem parar, sobretudo jornais, e sabia muito de história, de futebol, de política. Possuía vocação intelectual.

Hoje, meu avô teria mais sorte. O mundo mudou para melhor, ele provavelmente não trabalharia numa fábrica aos 10 anos de idade e provavelmente estudaria numa escola pública, como estudei. Mas provavelmente não poderia fazer faculdade, como fiz. Porque, além de pobre, era branco. Não há quotas para brancos e pobres em faculdades.

É por isso que sou a favor de quotas. Para pobres de todas as cores. Universidade gratuita, só para pobre. Rico ou remediado, que pague. Inclusive na universidade pública.

Pensei no meu avô, na universidade que ele queria ter feito e nas quotas que não existem porque pensei no sistema que vige no Brasil: um curioso sistema de justiça compensatória.

A isso nos levou a desigualdade. Foi mais ou menos na época em que o meu avô teve o dedo esmigalhado, anos 1920, que descobrimos a desigualdade, no Brasil. Desde lá, tentamos corrigi-la. O problema é a nossa pressa.

Getúlio, na pressa de dar aos trabalhadores o que o meu avô não tinha, fraturou a democracia. A partir daquele momento, não paramos mais de nos atrapalhar e de empregar o mesmo padrão de compensação. O trabalhador brasileiro ganha mal, mas na Justiça do Trabalho ele vence sempre. 

O ensino público básico é ruim, mas o ingresso nas universidades é fácil. O salário do aposentado é baixo, mas ele para de trabalhar cedo. O empresário é amassado pelas taxas e pela burocracia, mas é aliviado por empréstimos amigos de bancos públicos. O empreiteiro tem que pagar propina para fazer a obra, mas superfatura na licitação.

Você reconhece o erro, admite-o de público, mas não o corrige: para se redimir, oferece uma contrapartida. É como o juiz de futebol que tenta consertar o erro na marcação de um pênalti com o erro na marcação de outro. Em vez de errar uma só vez, ele erra duas. Em vez de cumprir a lei, ele tenta fazer justiça.

Está tudo arrevesado. O que era para ser garantia virou chicana. A justiça compensatória, no fim, produz injustiça.

Meu avô teve a mão mutilada trabalhando aos 10 anos de idade. Aquele dedo nunca mais desentortou. Alguns defeitos de infância não são corrigidos jamais.