quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017



16 de fevereiro de 2017 | N° 18770 
CARLOS GERBASE

ESCOLHA SUA INFÂNCIA

No belo e desconcertante epílogo de Os Fatos: A Autobiografia de um Romancista, Nathan Zuckerman, personagem ficcional de Philip Roth, critica a narrativa pretensamente objetiva que Roth oferece sobre sua infância. Que fique claro: trata-se da infância real de Roth, não a ficcional de Zuckerman. O fato deste desaprovar explicitamente a publicação do texto de seu criador justifica, creio eu, o adjetivo “desconcertante” que usei na primeira linha deste texto. Roth é bom nesses jogos metalinguísticos, que alcançaram seu clímax em Operação Shylock. Mas não quero falar de literatura, e sim de memória. Ou do cruzamento dessas duas instâncias fundamentais para a humanidade.

O que um adulto já maduro, na casa dos 50 ou 60 anos, lembra de sua infância? Na opinião de Zuckerman, Roth está errado sobre a felicidade de seus primeiros anos, amparada por um pai trabalhador e sempre presente, um irmão confiável que sabia comprar bons livros e uma mãe amorosa (talvez amorosa demais, mas o que uma mãe judia pode fazer quanto a isso?). 

Zuckerman aposta numa infância sufocada por pais rígidos e numa adolescência sexualmente reprimida. Em quem devemos acreditar? O recado de Roth é, a meu ver, bastante claro: é impossível chegar a veredictos 100% confiáveis quando julgamos fatos que aconteceram há tanto tempo, mesmo que eles sejam tão definidores em nossas vidas.

Freud acreditava que, se os acontecimentos da infância fossem suficientemente terríveis, eles seriam jogados para um lugar escuro chamado inconsciente, de onde voltariam fantasiados de neuroses ou psicoses. Será? A epigenética ensina que as informações de DNA herdadas de nossos pais manifestam- se, na prática, em estrita colaboração com outras contingências – orgânicas, ambientais e sociais – desde a vida no útero. 

Não adianta estudar apenas o código genético para compreender o que somos. Temos que estudar tudo em volta. Se a psicanálise, ciência do século 20, carece de dados experimentais para ser confiável, as ciências cognitivas do século 21 nos oferecem dados em excesso. A arte, em particular a literatura, poderia ser um caminho alternativo, mas aí Roth embaralha a questão ainda mais. Talvez seja melhor admitir: morremos sem saber como começamos a viver.