quarta-feira, 15 de fevereiro de 2017


15 de fevereiro de 2017 | N° 18769 
PEDRO GONZAGA

A ESCOLHA


Não lembro ao certo o que me fez escolher o saxofone, nem perseverar no instrumento, seria confortável dizer que foi a influência do jazz, daquele disco do Dave Brubeck que o Ênio – um amigo da mãe que era aficionado pelo gênero – me gravou em K7 quando eu tinha 16 anos, mas isso seria uma mentira escrita, daquelas que um dia talvez alcançassem a verdade que têm os documentos e os tratados, 

só que já não me encantam as mitologias, menos ainda a pessoal, e se chegou a haver uma coisa garantida sobre esses inícios da minha vida de músico foi a fantasia de irromper o palco para um daqueles solos de sax que impregnavam as canções dos anos 1980 de luxúria e picardia, sobrepujando guitarristas e até cantores, solos capazes de acrescentar exotismo e mistério à carta de ações pessoais no sempre disputado mercado das relações da juventude, mas, como eu disse, isso foi reconhecidamente uma fantasia, e ninguém supera as dificuldades de aprender um instrumento de sopro sem uma razão mais forte do que o delírio de tocar com a Tina Turner, 

e se agora não lembro da razão que me fez escolher e insistir no sax é porque provavelmente ela não estivesse lá, como tantas vezes nas coisas que perseguimos às cegas porque perseguimos, porque em algum lugar acreditamos que o motivo de tudo haverá de se revelar, ao acumular dos anos, quem sabe, das repetições, até que um dia, em geral não esperado, quando já somos outros (eu virei poeta, não suficiente perpetrei livros), 

descobrimos, de um golpe, o que apenas começávamos no mundo duas décadas atrás, e eu o descobri na semana passada, num sarau em Lisboa, organizado pelo Valério Romão, excelente prosador da nova geração portuguesa, descobri-o ao ler ao lado do irmão em letras Paulo José Miranda, no boteco legítimo de uma galega chamada Lucia, cujos clientes, gente humilde e embriagada, misturados aos amantes da literatura, como o escritor Luís Carmelo, 

formaram uma acalentadora plateia: descobri que o que eu buscava era ter uma voz que os outros gostassem de ouvir, capaz de congregar quem está na casa, e que soasse bem, fosse nos rasgados ou aveludados de um saxofone, fosse agora, nessa combinação de volteios – sinceros apesar de seu mau ritmo – que um dia Camões tocou como ninguém.