sábado, 11 de fevereiro de 2017



11 de fevereiro de 2017 | N° 18766 
DAVID COIMBRA

Que show

Hoje, a Bossa Nova seria impossível. Não só por ser intimista demais para um povo que se acostumou com a velocidade, mas porque o contemplativo fruir da vida não faz mais parte das aspirações do brasileiro. Antes, a felicidade era possível apenas com um chopinho e o ir e vir do mar, agora as pessoas exigem emoções mais explosivas.

Nos Estados Unidos, a Bossa Nova continua sendo um sucesso, pelo menos em certos meios. É a única música brasileira que toca por aqui. Alguns americanos até acreditam que o Brasil ainda é assim, e não vou ser eu quem vai desiludi-los. Eles ouvem alguma coisa bonita de Tom Jobim, encompridam o olhar para mim, esperando que esteja nostálgico, e não os decepciono. Suspiro:

– Ah, Brazil...

Infelizmente, nunca assisti a um show do João Gilberto. Por dois motivos: porque ele faz poucos shows e porque tenho medo. João Gilberto é muito exigente e tem ouvido apuradíssimo, pode reclamar do ronronar do ar-condicionado, da competência do técnico de som ou até do entusiasmo da plateia. Uma vez, a assistência cantou junto “quem, quem”, numa execução de O Pato, e ele se levantou e foi embora, furioso com os desafinados. Imagina se, sei lá, tenho um ataque de tosse e ele me xinga? Melhor evitar a possibilidade de humilhação.

Até prefiro show em bar, se você quer saber. Não bar com música ao vivo, mas bar em que você vai para ver o show.

Em Nova York tem um, o Terra Blues, em Greenwich Village, para onde você leva a sua própria comida. Chega com a sua quentinha, senta-se, pede um drinque e fica assistindo aos bluseiros mandando ver. Se você não quiser levar o lanche de casa, pode comprar em um boteco que fica em frente. Eles acondicionam a comida em uma caixa de isopor e, no bar, você pede os pratos e os talheres. Nova-iorquino.

Já fui a três shows do Chico Buarque. Do primeiro, não gostei. Ele chegou, disse boa noite, cantou e foi-se embora. Sem graça. Do segundo, não gostei também, porque ele fez a mesma coisa.

No terceiro, houve um ingrediente diferente. Não no show, na véspera: nós fomos convidados para jogar bola com o Chico Buarque. Todos gostávamos das músicas dele, ficamos empolgados com o evento. O jogo seria ali no campo do Força e Luz. Futebol 7.

O Ivan Pinheiro Machado pegou no gol, o Potter postou-se na frente da defesa, feito um dobermann, o Felipe Vieira era o zagueirão tosco, o Professor Juninho fez o meio e o Degô fincou-se na centroavância. Eu era o pensador do time, óbvio. O cérebro. O maestro pifador.

Chegamos, nos fardamos e fomos para o prélio. No time do Chico, jogava o Carlos Simon, muito fominha, que marcou vários gols, tirando um pouco o protagonismo da estrela da festa. O Chico estava bem magrinho, quase quebradiço. Então, era marcado a distância por todos, menos pelo Potter. Com sua fúria alegretense, o Potter deu duas porradas no Chico. Numa delas, o cara foi parar nas britas que havia em volta do campo, todo estropiado, que nem o Recruta Zero quando apanha do Sargento Tainha. Abri os braços:

– Ô, Potter, o hômi tem show amanhã!

Mas o Potter não se sensibilizou. No lance seguinte, acertou uma bomba no baixo ventre do Chico, que se contorceu todo e observou:

– Ãffff! O Professor Juninho começou a se destacar no nosso time. A despeito da gana do Simon, o Juninho tornou-se o artilheiro da noite. Marcou um, dois, três e deu o passe para o Degô fazer outro. Íamos vencer aquele joguinho, mas o organizador nos chamou na lateral e avisou:

– Não pode ganhar do time do Chico!

Como é que é? Deu uma revolta geral, queríamos nos rebelar, mas os organizadores simplesmente tiraram o Juninho do nosso time e o colocaram no do Chico. Aí eles ganharam. Golpistas.

Havia um churrasco esperando por nós no final, mas o Chico ficou com receio de ser incomodado por uns bêbados que estavam atrás de uma goleira e, terminada a partida, entrou em um carro preto sem nem tomar banho e foi-se embora para o hotel, curar os machucados causados pela violência do Potter. Ficamos muito frustrados.

Mas, no dia seguinte, havia o show. Ele chegou, deu boa noite, cantou e foi-se embora.

Golpista.

Dois dias depois, o Paulinho da Viola apresentou-se no mesmo teatro, só que com menos condições técnicas. Foi uma apresentação mais simples, caseira, sem efeito especial algum. Em certo momento, arrebentou uma corda do violão do Paulinho e, enquanto ele consertava, ficou conversando conosco, contando histórias, rindo, como se estivesse em um bar.

Foi sensacional. Um dos melhores shows da minha vida. Intimista, estilo Bossa Nova, ainda que fosse de samba. Bem brasileiro.

De um Brasil que não existe mais.