sábado, 27 de janeiro de 2018


27 DE JANEIRO DE 2018
ABRÃO SLAVUTZKY

OS MISTÉRIOS DE CLARICE


Sempre me fascinou o mistério das cavernas. Às vezes são como labirintos, onde o homo sapiens viveu nelas, Ali Babá e os quarenta ladrões escondiam suas riquezas numa caverna. Há anos, satisfiz o desejo infantil de entrar em cavernas visitando o Petar, acompanhado do filho Davi. O estudo das cavernas é espeleologia, pois espeleo, em grego, é caverna. Na época, inventei a palavra espeleoterapia, pois entrar em uma caverna, que é um outro mundo, com vida própria, com animais próprios, é uma terapia. 

A gente passa nove meses em uma caverna quentinha e depois é expulso rapidamente. Entrar na caverna é entrar num labirinto, já a saída é um renascimento. Cada conto ou novela de Clarice Lispector, bem como algumas das crônicas, é como uma caverna com labirintos: gera um estranhamento, às vezes medo, outras, uma sensação de maravilha.

Descobri os escritos dela na crônica Pertencer: "Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma missão determinada e falhei". O pensamento da época era dominado por crenças mágicas que curavam as doenças, e assim ela foi criada. Sua família judia, muito pobre, sofreu as perseguições antissemitas na Ucrânia. Para aumentar sua melancolia, presente em sua vida e obra, seu pai, homem culto e comerciante frustrado, era triste e silencioso.

Clarice nunca ocultou seu misticismo, que bebeu no Judaísmo, no Cristianismo e nas cartomantes. Fortaleceu assim suas crenças e também justificou sua necessidade de castigo. Em seu conto A Felicidade Clandestina, escreveu: "A felicidade sempre iria ser clandestina para mim". A escrita foi sua saída vital: "Eu escrevo e assim me livro de mim e posso descansar". Leio Clarice e sinto vontade de abraçá-la, mas me sinto também abraçado, pois ela fala dela, fala de nós, somos sofredores e meio estranhos.

Escreve virando as coisas do avesso, num clima de tensão dolorosa. Conta sobre o cachorro Dilermano, os cavalos, as baratas, um ovo, a empregada doméstica, o motorista de táxi, ou o bandido Mineirinho. O estranho do qual tanto se fala de Clarice, vive nos sonhos, nossos visitantes noturnos. Ela revela o estranhamento, pois todo ser humano é habitado por um desconhecido: o inconsciente. Um exemplo de como escreve é sua definição de janela: "O que é uma janela senão o ar emoldurado por esquadrias?". Simples assim, original assim, assim ela escrevia. Ler essa escritora é uma aventura, tão ou mais excitante do que conhecer as cavernas do Petar.

Clarice foi homenageada em vida e depois de sua morte, em 9 de dezembro de 1977. Já no dia seguinte, Drummond escreveu: "Clarice/Veio de um mistério, partiu para outro". Caetano Veloso fez a música Clarice, cujo estribilho é: "Que mistério tem Clarice/Pra guardar-se assim tão firme, no coração". Hoje já está traduzida em trinta idiomas com sucesso crescente. Na verdade, os mistérios de Clarice são os mistérios do ser humano, alguns nunca esclarecidos. O mistério de sua arte está na forma original de escrever, que tanto toca os corações dos leitores do Brasil e do mundo.

ABRÃO SLAVUTZKY