sábado, 23 de março de 2013



23 de março de 2013 | N° 17380O
PRAZER DAS PALAVRAS | CLÁUDIO MORENO

Não vem de cuia

Mal começava a semana e uma leitora de Brasília comparecia com uma pergunta que, se não é difícil, certamente será das mais delicadas a que já respondi. “Há muito tempo acompanho o que o senhor publica no www.sualingua.com.br e sei muito bem que o senhor vive aí no Rio Grande do Sul. Eu sou professora, cearense, e meu marido é sergipano; este ano tivemos a oportunidade, pela primeira vez, de visitar a Serra Gaúcha, onde moram velhos amigos nossos.

Apreciamos muito a paisagem e a comida, mas o que mais chamou nossa atenção foi o sotaque cantado das pessoas e as palavras diferentes que elas usam. Fui fazendo uma lista de todas as que eu não conhecia, anotando ao lado seu significado; a dona da pousada em que nos hospedamos me ajudou bastante, mas não soube me dizer o que significa a palavra cuiuda, colhida numa frase que ouvi no posto de gasolina: “Ele comprou uma camionete cuiuda”. Parece vir de cuia, mas para mim não faz sentido algum; meu marido sugeriu que poderia vir de algum dialeto italiano ou alemão que a gente não conhece”.

Prezada leitora, confesso que o assunto é um tanto embaraçoso, mas, em nome da ciência, vou explicar o que pedes – não sem antes, porém, recomendar que tires as crianças da sala, pois vamos ter de deixar o decoro de lado para entrar no mundo rude e pitoresco do vocabulário chulo.

Esta palavra não vem de cuia, como parece, nem de qualquer dialeto de imigrantes; na verdade, cuiudo é uma variante popular de colhudo, que significa aquele que tem colhão (ou culhão, como também aceitam alguns autores). Para facilitar a explanação, começo explicando a forma, para depois tratar do conteúdo: essa troca do /lh/ por um /i/ é muito comum na fala popular de várias regiões do Brasil; se palha vira /paia/, trabalha vira /trabaia/ e mulher vira /muié/, nada mais natural que colhudo (ou culhudo) vire coiudo (ou cuiudo) – ambos sem acento, porque o U vem depois de ditongo.

Agora, sem mais ambages (“rodeios”), vamos ao significado: os colhões são os testículos dos mamíferos machos. Vem do Latim coleo, colionis e traz, desde sua origem, este traço de vulgaridade que o torna impróprio para o uso entre pessoas educadas. Isso já estava presente em 1540; João de Barros, em sua Gramática da Língua Portuguesa, ao explicar o que é um cacófato, já chama este vocábulo de “torpe” (o exemplo é delicioso): “Cacófato quer dizer mau som e é vício que a orelha recebe mal; e comete-se quando, do fim de uma palavra e do princípio de outra, se faz fealdade ou significa alguma torpeza, como: Colhões tão grandes tem aquela lebre! por: Que olhões tão grandes tem aquela lebre!”.

Certamente por alguma inconsciente motivação machista, esta peça da anatomia masculina sempre esteve, no Ocidente, associada à ideia de coragem e valentia. Em Espanhol, tener cojones; em Francês, avoir les couilles; em Italiano, avere i coglioni – todos compartilham o mesmo significado físico e moral de nosso ter colhões. Colhudo, portanto, significa simplesmente “aquele que tem colhões”. Referindo-se ao plano físico, aplica-se ao animal macho que ainda está inteiro; já em 1562, em seu dicionário Latim-Português, Jerônimo Cardoso opõe o bode colhudo ao bode capado. Aqui no sul, Simões Lopes Neto usa o termo exatamente nesse sentido:

“A bagualada estranhava aqueles movimentos; os colhudos começavam a relinchar, ajuntando, pastorejando as manadas” (do conto Correr Eguada). No sentido figurado, usa-se como sinônimo de “destemido, ousado, valente, guerreiro” – e aqui, desvinculado da anatomia, vale também para as mulheres: “Pelé era um jogador fino mas colhudo”, “Leni Riefenstahl, a diretora nazista, era uma mulher muito colhuda”. É assim que aparece na frase que te chamou a atenção: “Ele comprou uma camionete cuiuda”.

Não posso deixar de registrar que este termo tem, na Bahia, um significado completamente diferente. Como explica João Ubaldo Ribeiro, colhuda é “uma mentira desinteressada, ou interessada sobretudo em enaltecer, direta ou indiretamente, o colhudeiro” (o mentiroso) – o que a coloca como sinônimo de lorota, balela, potoca e outros tantos. Estranho muito esse colhudeiro; embora o vocábulo exista (afinal, milhares de baianos o empregam naturalmente), tem aquela cara de palavra inventada, de palavra de brincadeira, como aquela fantástica unidade de medida que usávamos no ginásio para medir intervalos ínfimos de tempo, o saudoso colhonésimo de segundo...