sábado, 30 de março de 2013



31 de março de 2013 | N° 17388
O CÓDIGO DAVID | DAVID COIMBRA

O lado bom do câncer

Talvez você não saiba, mas tirei um rim. Quer dizer: eu, não; tiraram para mim. Disseram que meu rim estava apodrecido por um câncer e que precisava ser removido. Concordei, e eles o fizeram com presteza. Agora ando pelo mundo com um único rim.

O que posso dizer disso tudo é que gostava do tempo em que tinha dois rins. Não que a vida seja muito diferente com um só, mas, puxa, a Natureza sábia nos deu dois por algum motivo. Tenho que cuidar com desvelo do que me sobrou. Sei o quanto vale um rim.

O que se diz nessa hora

As pessoas me untaram com inúmeras palavras de conforto, nesse período de recuperação. Ajudaram bastante, continuam ajudando. Mas às vezes me deixaram intrigado. Vou citar algumas curiosas frases de consolo que você ouve nesse momento delicado

1. “Você vai se tornar uma pessoa melhor graças a essa experiência.”

Francamente, não quero me tornar uma pessoa melhor. Desconfio até que esteja me tornando uma pessoa pior. Sim, um homem com um rim só não se importa de ser malvado de vez em quando. Tenha cuidado com quem só tem um rim.

2. “Você vai aprender muito com isso tudo”.

Nem doutorado em Harvard custa tanto. O preço dessa lição é alto demais para mim. Prefiro a felicidade da ignorância.

3. “Nesses momentos, a nossa fé em Deus aumenta”.

Perguntei por que aumentaria. Resposta: Deus ajuda na recuperação. Certo, Ele ajuda. Mas por que, então, Ele me incrustou um câncer no rim? Não fiz nada para merecer isso. Não sou grupo de risco, não fumo, faço esporte, me alimento bem, vou almoçar com minha mãe todas as semanas. Por que o câncer??? Deus deveria ter ajudado ANTES, impedindo o câncer. Não vou recusar Sua ajuda, claro, estou precisando, mas sinto-me um pouco ressentido por ter pego um maldito câncer e, agora, por contar com apenas um rim nas minhas entranhas. Mas ressalto: quando digo isso não é nada pessoal, espero que o Senhor não deixe de me ajudar por causa dessa pequena crítica.

Feliz, mas crespo

Em todo caso, é preciso pensar positivo. Deve haver algum lado positivo em se pegar um câncer. O Gianecchini pegou um e nunca o vi tão faceiro. Escreveu um livro, aparece em tudo que é comercial, dá palestra. Era um comum, antes do câncer; agora virou personalidade. Como é que pode um cara ficar tão feliz com um câncer?

Mas ele voltou crespo, depois que se curou. Terá valido a pena?

Um câncer opera mudanças... Vá que eu volte de cabelo liso e com a cara do Gianecchini. É preciso pensar positivo.

Meu funeral

Outra coisa boa é que o câncer lhe rende homenagens póstumas. As pessoas pensam: coitado, vai morrer. E aí passam a olhá-lo pelo seu lado positivo, como se o seu passamento já tivesse ocorrido. É como se você tivesse a alegria de assistir ao seu próprio funeral. Espero que, depois, quando eu ficar bom e com a cara do Gianecchini, as pessoas continuem boazinhas comigo.

Medo de agulha

Um dia depois de sair do hospital, fui fazer uns exames de sangue complementares. A moça do laboratório me perguntou:

– Você tem medo de fazer exame de sangue?

Respondi:

– Nos últimos cinco dias rodearam o meu umbigo com fincadas de injeções, picaram as veias dos meus braços bem umas 40 vezes, enfiaram um canudo no canal do meu pênis e um dedo no meu ânus, meteram-me um dreno no flanco, abriram-me um buraco na barriga, lá de dentro tiraram meu rim e me costuraram. Não tenho medo de fazer exame de sangue.

Isso é pensar positivo, não é?

Poesia numa hora dessas

João Cabral de Melo Neto sobre o câncer:

“O câncer é aquele ônibus

Que ninguém quer mas com que se conta;

Não se corre atrás dele,

Mas quando ele passa se toma”.