quinta-feira, 21 de abril de 2016



21 de abril de 2016 | N° 18505
O PRAZER DAS PALAVRAS | Cláudio Moreno

Parece, mas não é

QUANDO DOIS VOCÁBULOS muito se assemelham, não é raro que causem confusão, principalmente entre as palavras de uso menos frequente

Um professor de História do Brasil, contemporâneo de faculdade e divertido parceiro de bar, pergunta se eu poderia ajudá-lo a sair de uma sinuca em que se meteu: “Moreno, eu me lembrei de ti: pois não é que me embananei ao examinar, com meus alunos, um texto de José do Patrocínio? Ao falar da coragem de Ângelo Agostini, aquele caricaturista que tanto lutou na campanha abolicionista, Patrocínio usa o termo intemerato (“Quanto mais perseguido, mais intemerato”). 

Para um aluno que perguntou, expliquei tranquilamente que era um sinônimo meio arcaico para destemido – e aí veio uma aluna e me mostrou, no celular dela, que não era nada disso, e que intemerato significa puro, sem manchas. Fiquei com a cara no chão e prometi que ia consultar os universitários... E aí? Não dá para dizer que esta palavra pode ter duas significações? Porque se não, o que ele escreveu não faz o menor sentido”.

Meu caro amigo, infelizmente vocês dois – incluo aqui o José do Patrocínio – foram enganados pela semelhança entre dois vocábulos muito parecidos. O dicionário da mocinha estava corretíssimo: intemerato significa “não corrompido, sem manchas”; vem do Latim intemeratus, com o mesmo sentido de “puro, sem máculas”. Rui Barbosa vocifera contra a imprensa sensacionalista que lançava infâmias contra “o nome augusto e intemerato da mais virtuosa filha dos reis de Inglaterra”, e Antero de Quental sugere que “Num céu intemerato e cristalino/Pode habitar talvez um Deus distante”. José do Patrocínio, não tenho dúvidas, queria empregar intimorato – aí sim, “aquele que não sente temor, destemido”. Como vais poder mostrar a teus alunos, a confusão entre esses dois termos é tamanha que o próprio autor tomou um pelo outro.

O fenômeno é muito mais frequente do que parece, principalmente entre vocábulos de uso menos frequente. Um outro bom exemplo é lutulento – ô, palavrinha bem feia! –, que vem de lodo (lutum, em Latim), e não de luto. Bluteau, no seu dicionário, define lutulento como “cheio de lodo, sujo de lama”, definição que vale até hoje. Augusto dos Anjos fala, corretamente, de “lutulentas, úmidas arcadas” – mas Álvares de Azevedo, tomando a nuvem por Juno, enfia uma “noite lutulenta” no meio das fúnebres imagens de sua Lira dos Vinte Anos.

Podemos fechar esta trinca com o velho adjetivo intermitente, que vamos ver por toda parte associado principalmente à chuva e à febre. Talvez por confundi-lo com insistente ou incessante, não são poucos os brasileiros que desconhecem que intermitente significa, na verdade, aquilo “que cessa e recomeça por intervalos” (Houaiss), “que tem paradas e não continua sempre” (Morais). Temos um belo exemplo do Marquês do Maricá (sim, ele existiu): “A razão no homem é como a luz do pirilampo: intermitente, pequena e irregular”. A febre (ou a chuva) intermitente, portanto, é aquela que vai e volta, mas não me parece que seja isso que as pessoas tenham em mente quando amaldiçoam (ou bendizem, como é o meu caso) aquela “chuvinha intermitente” de nossas tardes de inverno.