quinta-feira, 28 de abril de 2016


28 de abril de 2016 | N° 18511 
CARLOS GERBASE

INSTRUÇÃO


O ano era 1978. O Brasil era presidido pelo general Geisel. A abertura era lenta, segura e gradual, mas ninguém estava seguro quanto ao futuro da democracia. Contra minha vontade, eu era um soldado raso na Companhia de Comando da III Região Militar e, ao lado dos demais recrutas, recebia a Instrução – um conjunto de ensinamentos que nos habilitariam a servir à pátria de forma adequada.

Naquela tarde, o sargento Guasseli discorria sobre o Movimento Comunista Internacional e explicava que o mundo estava ameaçado por uma ideologia exótica, que não media esforços para subjugar todas as nações, exterminando a liberdade e instalando em seu lugar a ditadura do proletariado. Neste instante, não sei por que – um coágulo cerebral?, uma manifestação do caos?, um irresistível instinto suicida? – levantei o braço e pedi licença para falar. O sargento permitiu, e eu disse: “Na Itália, o Partido Comunista existe há muitos anos e participa das eleições. Ou seja: lá os comunistas têm vida política legal num contexto democrático”.

Senti 60 pares de olhos pousados sobre mim. Eles não precisavam falar nada para que eu entendesse: tinha cavado minha sepultura. O sargento disse: “Soldado, vou te responder, mas só no fim da aula”. Pronto, eu estava ferrado. Imaginei meu destino: um interrogatório minucioso, alguns dias na prisão, quem sabe um acidente durante um exercício de tiro... Ao final da Instrução, o Guasseli levou-me para um canto, olhou bem dentro dos meus olhos e disse: 

“Isso que tu falou é verdade. Não estou acostumado com soldados que estão na universidade. Vou te pedir: não fala mais essas coisas. Dispensado!”. Bati continência e voei para o alojamento, onde fui recebido como um Lázaro, um ressuscitado. Cumpri o restante do meu serviço militar sem enfrentar qualquer consequência da minha manifestação.

Passados 38 anos do incidente, é incrível constatar que, hoje, muitos civis não conseguem conviver com quem pensa diferente deles. Ao contrário dos pequenos Hitlers que se multiplicam por aí, o sargento Guasseli, um homem simples, um militar em pleno sistema ditatorial, tinha noção exata do que significa a palavra tolerância.

Em tempo: nunca fui e nunca serei comunista. Meu coração é anarquista. Mas isso eu não contei para o sargento.