sábado, 30 de abril de 2016



30 de abril de 2016 | N° 18513
PALAVRA DE MÉDICO | J.J. CAMARGO

UM TIPO ESQUISITO

É impressionante o efeito manada sobre o comportamento de pessoas consideradas normais. Em grupo, somos capazes de atrocidades que não cometeríamos individualmente. Essas atitudes desrespeitosas são frequentemente consideradas divertidas na infância, ignorando-se que, se não forem coibidas pela educação, estarão sendo forjados os sociopatas do futuro.

Operei, em Maceió, um garoto de sorriso triste que, aos 10 anos, fora retirado da escola pela mãe, temerosa das consequências das inúmeras vezes com que seus inocentes coleguinhas cutucavam o coração do menino, pulsátil no meio do peito e recoberto apenas pela pele, na ausência congênita de fechamento do esterno.

Se a maldade espontânea ainda puder ser blindada pelo anonimato das redes sociais, então todos os limites serão ultrapassados. Vide o desespero dessa mãe australiana que, acostumada com a aparência do filho, postou uma imagem dele com a cara lambuzada de chocolate. O menino é portador da síndrome de Pfeiffer, em que há uma consolidação precoce dos ossos do crânio, deformando o rosto e afastando os olhos. O mais cruel dos comentários comparou o pobre menino a um cãozinho da raça pug. Quando a mãe recorreu à Justiça e ouviu que os responsáveis pelas redes sociais não tinham cometido nenhuma arbitrariedade, a vilania foi liberada.

Um dia desses, encontrei o Rudimar, e bastou ele se apresentar para que eu lembrasse da circunstância constrangedora em que nos conhecemos, décadas atrás, num curso de extensão de inglês. Como em todas as épocas, havia uma tendência de que anualmente alguém fosse “escolhido” para ser a vítima da turma. Não lembro por qual critério, naquele ano, tinha sido ele. Lembro-me do coro com que o recebíamos na sala de aula: “Rudi, Rudi, freak, freak!”. Tudo bem, ele era meio estranho com aquelas meias brancas e a calça curta o suficiente para mostrá-las, mas freak, freak?

Quando ele se identificou e disse o quanto estava feliz de me encontrar e do orgulho que sentia de dizer que me conhecia, mais eu me mortificava pelo bullying ridículo que lhe impusemos naqueles tempos remotos. Convidou-me para um café na sobreloja do supermercado porque queria me contar uma história e por ela me agradecer. Ao vê-lo orgulhoso da sua vida de avô amoroso e empresário bem-sucedido, fui ficando aliviado ao descobrir que, no máximo, ele devia lembrar daquela turma de falsos malandros como um bando de idiotas, e era bem assim que eu me sentia. Queria me contar que cuidara do pai diuturnamente durante os últimos três anos de sua vida e, nessa tarefa, uma crônica que escrevi sobre o efeito carinhoso e relaxante da massagem o ajudara muito.

Um dia, enquanto lhe friccionava os cotovelos enrijecidos, o velho lhe disse: “Tomara que teus filhos prestem atenção no jeito que cuidas de mim, porque o mundo é redondo!”.

Ele, então, improvisou: “Pai, vire de bruços para que eu possa massagear-lhe as costas”. Foi a maneira que encontrou para ocultar o choro que não conseguia mais conter e não queria que o velhinho interpretasse como uma despedida. “Passados três anos, ainda sinto vontade de chorar quando lembro da lambança silenciosa que foi a mistura de lágrimas com creme Nívea!”.

Feito o agradecimento, ele seguiu empurrando o carrinho de compras em direção ao estacionamento. A turma dos babacas tinha acertado o diagnóstico: que tipo esquisito!