sábado, 23 de abril de 2016



23 de abril de 2016 | N° 18507 
DAVID COIMBRA

O time da foto

Então surgiu, arrancada das profundezas empoeiradas de alguma gaveta, uma velha foto do Huracán, em formação de combate no campo santo do Alim Pedro.

Huracán, o furacão do Passo d’Areia.

Estávamos todos ali. Em pose solene, cara de mau, braços cruzados diante do peito de aço, o goleiro Raimundão lançava um olhar ameaçador para o fotógrafo. Raimundão ainda não tinha idade para usar o bigode e a capanga que lhe completariam a figura, anos depois. O bigode servia para homenagear Rivellino; a capanga, para guardar um tresoitão negro da cor das trevas mais densas. Ao entrar em campo, Raimundão acomodava a capanga no fundo da rede e dava uma passada d’olhos pelos rostos lívidos dos adversários, que o observavam durinhos, do outro lado do campo.

Uma vez o Diana, que gostava de irritar os outros, irritou o Raimundão por algum motivo. O Raimundão jogou seus dois metros de massa bruta em cima do pequeno Diana. O Diana, mais rápido, conseguiu se esquivar e saiu correndo feito um gnu. O Raimundão foi atrás, urrando feito um leão. O Diana se homiziou em casa. O Raimundão não teve dúvidas: pedalou a porta, que voou sala adentro, fazendo desfalecer a mãe do Diana num único oh.

Hoje, pelo que sei, o Raimundão é um homem pacífico, próspero dono de táxi, bem-casado. A Revista Veja o definiria como um respeitável chefe de família.

O Diana também está na foto, bem faceiro dentro de uma camisa do Grêmio – o Diana era mais gremista do que o Cacalo. Uma vez ele apostou que comeria grama se o Grêmio não vencesse a final do Gauchão. O problema é que estávamos nos anos 1970, e o Inter tinha aquele time de Falcão, Figueroa, Valdomiro...

O Diana pastou um tufo generoso da ponta esquerda do Alim Pedro, e nós aplaudimos sua esportividade.

Hoje o Diana é reconhecido professor e homem de religião. Já foi petista acérrimo, mas está meio arrependido. O que me faz lembrar que, naquele tempo, nossa ideia de política era singela e linear: para ser presidente da República, um homem tinha de entrar no Exército e virar general. Ponto.

Para nós, essa era a ordem natural das coisas, porque só conhecíamos o regime militar. Ainda hoje lembro de uma cena que se passou bem antes do dia daquela foto: a professora Alba escrevendo a giz, com letra emendada, o nome do presidente no quadro-negro: “Emílio Garrastazu Médici”. Nós brincávamos com o nome do meio, dizíamos “Garrafa Azul” e achávamos muito engraçado.

A professora começou a descrever o presidente e contar sobre suas façanhas, sobre como o Brasil crescia sem parar, como era o país do futuro. Alguma revista poderia publicar na capa a famosa foto do Cristo Redentor decolando.

Também no cinema, pouco antes de começar o sensacional Canal 100, Médici aparecia como um homem disposto a desenvolver o Brasil, admirado pelo mundo inteiro como grande estadista (alguém talvez pudesse dizer que era “o cara”), e, para arrematar, mostrava-se um torcedor de futebol como todos nós: Médici era tão gremista quanto o Diana. As TVs de Brasília transmitiam direto os jogos do Grêmio, por suave sugestão dele.

Num dos tomos do já clássico livro de Elio Gaspari sobre a ditadura militar, ele conta que, certa feita, ao saber que o preço da carne ia subir, Médici determinou que, antes disso, fosse vendida determinada quantidade de seus bois, em sua fazenda de Bagé, para não se beneficiar de informação privilegiada. Em outra oportunidade, mandou que uma estrada em construção fosse desviada para não passar perto de suas terras. Não queria que se valorizassem e parecer que estava tirando proveito do governo.

Ou seja: Médici era honesto até os gorgomilos e, em seu governo, o país cresceu como se fosse a China, mais de 10% ao ano, e foram erguidas obras estruturais importantíssimas, como a Usina de Itaipu, e, no plano social, houve preocupação com os desassistidos, como aquele gigantesco programa de alfabetização, o Mobral, e a criação de um instituto de Reforma Agrária, o Incra.

Isso tudo era dito naquela época.

Hoje, à luz dos acontecimentos, o que se pode dizer do governo Médici?Óbvio: que foi criminoso. Todos sabemos, agora, que aquele foi um dos governos mais sanguinários da história do Brasil, em que houve tortura e repressão.

Mas note como as coisas se tornam relativas, quando analisadas por partes. E como tudo fica confuso, quando olhado de dentro, e não de longe.

Examinando de novo aquela antiga foto, percebo que nada disso tinha importância para nós, naquele tempo. Nós queríamos era jogar bola e rir com os amigos. Mas havia ali outras histórias, que também me fazem pensar em coincidências da vida. Que conto na próxima coluna.