quarta-feira, 27 de abril de 2016


27 de abril de 2016 | N° 18510 
PEDRO GONZAGA

O DENTE AMARELO



Nas ruas desertas do bairro da infância não havia ainda o risco das armas de fogo das movimentadas ruas do bairro da maturidade. Seria exagero falar em violência lírica, embora a arte há muito tenha confirmado tal possibilidade, mas era ao menos uma violência com a qual podíamos lidar. Um dente quebrado, um olho roxo, joelhos e cotovelos ralados por rolar no areião em luta corporal. Um mundo de regras rígidas: se alguém estivesse sozinho, os combates eram mano a mano, cusparadas e mordidas expunham ao opróbrio o seu perpetrador.

À época, assombrava a região uma gangue autodenominada “a maloqueirada”, senhora da praça João Bergmann e arredores, cuja missão era surrar garotos burgueses e, ao cabo, arrancar-lhes o dinheiro da merenda (temor extremo para um gordo).

Gordo e burguês, eu lhes era um alvo fácil, pois não tinha as pernas leves de meus amigos à hora da fuga. Entre meus 10 e 13 anos, restava-me apanhar e ouvir calado a uns xingamentos que hoje inflamariam as redes sociais. Um dos chefes, não sei por que, assim que me via, avançava para me dar um soco no braço ou no peito. Era mais alto do que os outros, os olhos bem separados e um dente todo amarelo que se revelava antes de cada ataque.

Aos 14, troquei de escola e fui estudar no centro. Lá espichei e engordei um pouco mais (incapaz de resistir às promoções de chocolate das Lojas Americanas). Como passei a andar de ônibus, deixei de cruzar com a maloqueirada e meu algoz.

Somente aos 16 o reencontrei. Eu ia a pé, sozinho, ele também. Logo o reconheci, agora um palmo mais baixo do que eu. Segui em sua direção. Ao me encarar, mostrou-me timidamente o asqueroso dente amarelo. Fechei a mão. Preparei o soco da glória, um soco pesado de Foreman, mas ele desviou os olhos e, desvirtuado, encolheu-se ao passar por mim.

Às vezes volto a esse soco que não dei. Quando vaidoso, penso em como venci o primitivo desejo de vingança; quando nobre, em como pratiquei o lema de que a violência não leva a nada; quando honesto, contudo, em como perdi a chance de acertar uma porrada na cara da vida, quando ela não era mais do que uma singela aventura de bairro.