sábado, 23 de abril de 2016



23 de abril de 2016 | N° 18507 
L.F. VERISSIMO

Cuidado, que mancha

“Cuidado, que mancha” era uma das três ou quatro frases mais usadas pela mãe da gente.

Mais do que “come tudo, que espinafre faz bem” e “não esquece de baixar a tampa”. Manchar uma camisa ou, crime ainda mais hediondo, uma camisa nova, era imperdoável. A reprimenda da mãe incluía uma lista de consequências do nosso desleixo, cada uma mais carregada de culpa. Uma camisa estragada, para sempre irrecuperável, horas gastas na escolha, compra, estocagem e manutenção da camisa jogadas fora.

Você não tinha noção do que provocara com seu comportamento desastrado. Horror, horror.

É verdade que o escândalo durava pouco. A camisa maculada nunca estava totalmente perdida, voltaria como pano de prato ou coisa parecida.

Mas nossa culpa não acabava. Vivíamos entre dois medos, o de manchar outra camisa – "Meu Deus, ele se sujou com caqui, mancha de caqui nunca sai!” – e o de ser obrigado a usar babador, como um bebê.

E o trauma permanece, até hoje. O medo da mancha. O terrível medo da mancha que nunca sai.

Tomemos o caso do deputado X. Um político importante, com uma carreira exemplar, mas que por esses dias começou a ter uma sensação estranha, a sensação de ter uma mancha na frente da sua camisa. A camisa podia estar coberta por paletó e gravata, ou por fraque e condecorações, e ele sentia a mancha no peito. E ouvia a voz da sua mãe dizendo “Menino porcalhão!”.

O deputado X foi procurar um psicanalista e contou o que estava lhe acontecendo.

– Acho que tem a ver com a mãe, doutor.

– Tudo tem a ver com a mãe.

– Ela me criticava muito porque eu sujava a frente da camisa, quando comia.

– “Cuidado, que mancha”. Conheço bem. – A sua mãe dizia a mesma coisa, doutor?

– Oitenta por cento da minha clientela é de traumatizados por essa frase.

– E o que provoca essa sensação de culpa, doutor?

– Você deve ter feito alguma coisa que, inconscientemente, lhe deu culpa. Algo que manchou sua vida. A voz que você ouve é a da sua mãe, repreendendo-o através dos tempos.

– Mas eu não fiz nada para me sentir culpado. – Tem certeza? – Bom, eu estava em Brasília na semana passada e votei pelo... Hum, deve ter sido isso. Essa mancha sai, doutor?

– Sai, sai. No Brasil, nenhuma culpa dura muito.