sábado, 30 de abril de 2016



30 de abril de 2016 | N° 18513 
L.F. VERISSIMO

Geometria


Por que certas coisas sem importância aderem à nossa memória como craca num casco velho? Uma vez, o Barão de Itararé foi visitar meu pai. Não sei se já se conheciam ou se conheceram-se então. Eu devia ter uns 12 anos, o suficiente para saber quem era o Barão de Itararé e para não querer perder um minuto da conversa. E, no entanto, só o que me lembro daquele dia foi o Barão descrevendo como se abotoava uma camisa:

– Abotoa, espera um pouquinho, abotoa, espera um pouquinho, abotoa, espera um pouquinho...

Eu sei, a lembrança não está à altura do grande humorista, que deve ter dito coisas memoráveis. Mas o que ficou foi isso. Abotoa, espera um pouquinho, abotoa, espera um pouquinho, abotoa, espera um pouquinho. E o pior é que, até hoje, quando fecho uma camisa, repito mentalmente as palavras do Barão.

– Abotoa, espera um pouquinho, abotoa, espera um pouquinho, abotoa...

E aquelas músicas que não nos saem da cabeça? Geralmente são músicas ruins, que você tenta abafar pensando numa música boa. Em vão. A música reincidente volta sempre. Às vezes, você nem sabe que música é. Onde foi que eu ouvi isso, meu Deus? Será que eu mesmo inventei e não consigo parar de me atormentar com ela, numa espécie de suicídio auricular? Sempre imaginei que um sintoma de loucura irreversível é a pessoa não parar de ouvir o Bolero de Ravel na sua cabeça, o tempo inteiro.

Nós não nos conhecemos. Tive uma prova disso quando comecei a estudar num high school americano e me vi em território nunca explorado na minha experiência prévia de estudante brasileiro, principalmente na área da matemática. Dois mais dois também eram quatro nos Estados Unidos, mas fora isso eu estava perdido, incapaz de acompanhar os trabalhos de aula. Tudo agravado pela minha timidez e meu horror congênito a escola, qualquer escola, americana ou brasileira.

Até que um dia... Completei um trabalho de geometria e, ao entregar o trabalho para a professora, notei que era o primeiro a fazer isso e que os outros demonstravam dificuldade em terminar o que eu completara em poucos minutos. A professora elogiou meu trabalho e dali em diante, sempre que precisava de alguém para mostrar no quadro-negro a solução que escapara a todos os outros, chamava: “Mr. Verissimo...”.

O mistério dessa história é que eu não sabia que sabia geometria. Tinha uma vaga lembrança de estudar geometria no Brasil, mas nada que me transformasse, milagrosamente, naquele mestre na matéria. A geometria, em mim, era inata, um dom. Deixei de ser o estrangeiro que não compreendia nada e passei a ser requisitado para dar cola aos colegas. De onde saíra aquela sabedoria, aquela familiaridade com hipotenusas e ângulos? Eu não tinha a menor ideia.

Anticlímax. Depois que deixei o high school, e pelo resto da minha vida, nunca mais precisei usar a geometria.