sábado, 30 de abril de 2016



30 de abril de 2016 | N° 18513 
DAVID COIMBRA

Viciado em xadrez

Meio que me viciei em jogar xadrez na internet.

Sabe o que significa isso?

Que estou me aproximando da chamada idade provecta. Sim, porque você pode medir um homem pelos seus vícios. Drogas leves? Fermentados & destilados? Mulheres de pernas longas? Prazeres inenarráveis? Ou xadrez? Cada qual com suas possibilidades.

Sartre, no fim da vida, já totalmente goiaba, imaginava que jogava renhidas partidas de xadrez com Hercule Poirot, o detetive belga da massa cinzenta. Seriam confrontos históricos entre dois homens inteligentíssimos, não fosse o desagradável pormenor de que Poirot só existiu na ficção de Agatha Christie.

De qualquer forma, o fato de Sartre ser adepto do xadrez diz muito sobre sua personalidade. Um homem que joga xadrez é dono de vasta energia agressiva, e a energia agressiva em geral é de natureza sexual. Pois em verdade vos digo: não há jogo mais violento do que o xadrez.

Já contei aquela história sobre xadrez que se passou no meu tempo de IAPI?

Contarei.

Deu-se que um desses mestres infantojuvenis de xadrez desceu ao nosso bairro a fim de enfrentar 10 jogadores simultaneamente. O desafio ocorreria na Biblioteca Pública Romano Reif, que, na época, ficava numa sala do prédio de administração da Coorigha, na Plínio Brasil Milano. Hoje a biblioteca está incrustada bem em frente ao Alim Pedro, onde o degas aqui dava lançamentos de 55 metros, estilo Roberto Rivellino, para que o Jorge Barnabé pegasse na ponta-direita e fizesse o gol, estilo Búfalo Gil.

Até entrar na faculdade, li todos os livros dessa biblioteca. Ou, pelo menos, todos os que me interessavam, algumas centenas. Uma biblioteca pública pode mudar a vida de uma pessoa. Mas que governante consideraria boa ideia comprar livros?

Seja.

Estava contando a respeito do desafio simultâneo havido na biblioteca, nos anos 1970.

Quando o guri chegou ao IAPI, o tal mestre juvenil, confesso que ri dele. Mó cara de moscão, como se dizia na época. Candidatei-me a ser um de seus adversários. Sentei em frente ao tabuleiro com confiança sorridente, mas, já nos primeiros dois ou três movimentos, comecei a ficar aflito. Ele atacava com ferocidade, jogando aqueles bispos e cavalos para frente, espetando-me com seus peões, atirando-me para as fileiras de trás da minha defesa.

Eu olhava para ele, tentando adivinhar suas reações, mas ele jamais me encarou. Ficava fitando o tabuleiro fixamente, usando aqueles dedos gordinhos para mexer as peças com rapidez estonteante. Duvido que tivesse reparado no rosto de qualquer um de seus 10 inimigos, e, no caso, nós éramos inimigos mesmo, ele queria nos trucidar o quanto antes e com toda a crueldade possível. Enquanto ele amassava os outros, eu ficava tentando encontrar uma saída para a situação em que me encontrava, mas ele logo se punha na minha frente outra vez, não havia tempo, era uma angústia. Perdi, perdemos todos nós, em escassos minutos. Terminado o serviço, ele se foi sem nem dar tchau, nos deixando no chão, desmontados e despeitados.

Aquele rapazote era um tipo perigoso. Ou ele hoje é campeão de xadrez ou é assassino profissional.

É a tal energia agressiva de que falo. Essa energia existe em todos, mas principalmente nos homens. Oitenta por cento dos acidentes fatais, no trânsito, são causados por homens. Oitenta por cento dos crimes violentos são cometidos por homens. Homens, agora, ofendem-se e se cospem por causa da política, no Brasil.

É preciso canalizar essa energia para outras atividades. Um Michelângelo, um Picasso, um Leonardo ou um Freud canalizaram esse poder criando arte ou ciência. Hitler e Stalin canalizaram perseguindo seus semelhantes. No caso do Brasil, em que infelizmente não há muitos Michelângelos, mas felizmente também não há muitos Stalins, nós sempre sublimamos nossa energia jogando futebol. Como o futebol também faliu, restam-nos os jogos de tabuleiro. Larguem a internet, enrolem as bandeiras, parem de cuspir. Vamos jogar uma saudável e cruenta partidinha de xadrez.