sexta-feira, 24 de junho de 2016



24 de junho de 2016 | N° 18564 
DAVID COIMBRA

Por que precisamos de heróis


Tinha um desenho antigo na TV que se chamava Viagem ao centro da Terra. Era baseado num livro de Júlio Verne. Um professor, um casal de alunos e um auxiliar fortão, mais uma pata simpática de nome Gertrude, haviam descoberto uma caverna que dava acesso às entranhas do planeta. No mundo subterrâneo, havia de um tudo: mares procelosos e rios compridos, cidades egípcias perdidas, insetos gigantes, todo gênero de perigos.

Quando eu era guri, aquela história me deixava assuntando. Perguntava-me o que realmente existiria abaixo da superfície. Hoje sei que ninguém sabe. Se você pegar uma boa pá, tiver músculos de Maciste e tempo livre para cavar até o ponto central do planeta, fará um buraco de 6.370 quilômetros. Nem é tanto assim, se você pensar que a distância de Porto Alegre a Boston é 2 mil quilômetros maior. O problema é que só Maciste tem músculos de Maciste e não há tempo que chegue e pá boa o suficiente para a tarefa.

As minas mais profundas chegam a três quilômetros. Os cientistas já tentaram ferir o solo usando os métodos mais perfurantes da ciência, mas só conseguiram chegar a coisa de 12 quilômetros. Ou seja: nem arranharam a epiderme da Terra.

Baseados nesses estudos e na análise de terremotos, geólogos concluíram que existe a crosta terrestre e abaixo dela um manto de pedra derretida e abaixo dele um núcleo duro de ferro e abaixo dele outro ainda mais duro, mas que, de tão quente, pode se tornar magma, e outro ainda, possivelmente sólido, mas que pode ser metal e rocha liquefeitos e fogo eterno e talvez lá estejam ardendo as almas dos bilhões de pecadores cumprindo pena no inferno desde que Noé salvou a raça do Dilúvio.

Talvez. Porque certeza, certeza, ninguém tem. Ninguém sabe o que acontece bem debaixo dos nossos pés.

É por isso que precisamos de heróis.

Não sabemos o que se dá acima ou abaixo de nós, não sabemos o que havia antes ou o que haverá depois do nosso tempo neste Vale de Lágrimas, somos pequenos, irrisórios, insignificantes, somos afligidos por todo tipo de doenças e perigos, células rebeldes podem se multiplicar irresponsavelmente dentro do nosso organismo e levá-lo à falência ou minúsculas bactérias podem nos comer vivos ou vírus insensíveis podem nos transformar em postas de carne putrefata ou pianos podem cair do oitavo andar direto na nossa cabeça ou crocodilos podem saltar de um lago artificial da Disney e nos arrastar para uma toca submersa ou algum de nossos semelhantes decide que precisa de nossos celulares e, para tirá-lo de nós, pode nos dar um tiro entre as orelhas ou podemos simplesmente escorregar no piso molhado do banheiro e bater com a fronte na pia e morrer. Meu Deus!

É por isso, repito, que precisamos de heróis. Para acreditar que a existência haverá de ser nobre e que a vida, afinal, vale a pena. Fernando Pessoa estava certo: se a alma não é pequena, a vida vale a pena. Mas nem todas as almas são grandes. Quero falar das que são. Amanhã.