quinta-feira, 16 de junho de 2016


16 de junho de 2016 | N° 18557
O PRAZER DAS PALAVRAS | Cláudio Moreno

Gamificação


A LÍNGUA, COMO A NATUREZA, não dá saltos, mas segue seus imutáveis caminhos

Os filólogos do séc. 19 estavam cobertos de razão ao afirmar que “as palavras seguem as coisas”: afinal, se importarmos uma novidade qualquer, vamos precisar de um vocábulo para designá-la. A solução mais comum é dar uma feição nacional ao nome que ela tinha em seu país de origem - é o que chamamos de aportuguesamento. Há autores, porém, por desconfiarem até mesmo desses estrangeiros naturalizados, que propõem, em seu lugar, formas que consideram “mais autênticas”, construídas exclusivamente com radicais e afixos do Português, do Grego ou do Latim.

Como fica, dentro desse quadro, o termo gamification (vindo de game, “jogo”, no Inglês), que designa “a aplicação de elementos do jogo para estimular a aprendizagem e fortalecer vínculos entre empresa e colaborador ou empresa e cliente”)? Com a crescente popularidade deste conceito na Educação e na Administração de Empresas, era inevitável que aparecesse alguém por aqui perguntando sobre isso. A iniciativa coube ao leitor Marcelo W., de Londrina, que está escrevendo sua dissertação de mestrado e hesita, com razão, entre empregar gamificação (com a variante gameficação) ou ludificação. Infelizmente, diz ele, nenhuma delas aparece nos dicionários mais importantes.

Marcelo antipatizou desde o início com ludificação, embora reconheça que é um vocábulo chique e bem formado, pois vem de ludo, “jogo”, o mesmo que nos deu lúdico. “Só não descartei essa hipótese definitivamente porque o verbete da Wikipedia registra apenas esta forma; isso quer dizer alguma coisa?”, pergunta. Ora, caro Marcelo, a Wikipedia – especialmente a brasileira – sempre deve ser lida cum grano salis (o equivalente, em vernáculo, a “com um pezinho atrás”); em questões de linguagem, posso assegurar que ela não pode ser citada como autoridade. O verbete apresenta a mera opinião de um colaborador anônimo que, neste caso, tem clara inclinação purista e conservadora.

Não por acaso, a tua escolha – gamificação – é a preferência nacional. Numa passada pelo Google (que computa as ocorrências por escrito dessas palavras), encontramos 150.000 exemplos de seu emprego, contra míseros 5.000 de ludificação. Seguindo essa tendência, em breve as diferenças serão ainda mais astronômicas.

A luta não termina aí, contudo, porque também corre pela internet a bizarra teoria de que a forma correta seria gameficação, já que se “usa sempre o E para vogais reduzidas (daí futebol, e não futibol)”. Não entendo muito bem o argumento, mas, seja lá o que for, é absurdo. A língua, como a Natureza, não dá saltos, mas segue seus imutáveis caminhos. O processo de derivação de verbos com o sufixo -ficar ocorre sempre com substituição da vogal final do radical por I: bestificar, beatificar, coisificar, danificar, exemplificar, frutificar – e, portanto, gamificar – de onde nasce, finalmente, gamificação. O fato de ser pronunciado /gueimificação/, com uma dissociação entre a grafia e o som, não é novidade para o mundo acadêmico, que sabe, por exemplo, que o freudiano da escrita é o /fróidiano/ da fala.

Cláudio Moreno, escritor e professor, escreve quinzenalmente às quintas-feiras.