sábado, 25 de junho de 2016


25 de junho de 2016 | N° 18565 
DIANA CORSO

GENTILEZA POÉTICA

O hidrômetro que marca e conta / a água que aqui consumo / é como fumaça que espalha / de um cigarro que não fumo. Foi com esta estrofe, seguida de uma explicação, também em verso, que um morador de Brasília escreveu à Companhia de Saneamento para reclamar de um provável erro na medição de seu consumo de água.

A funcionária incumbida de redigir a resposta, dizendo que os pagamentos indevidos seriam ressarcidos, não conseguiu conter as lágrimas ao ler para os colegas a missiva recebida. Formada em Letras, acabou respondendo-lhe assim: Viemos pelo presente documento / apresentar os resultados apurados / na esperança de que com esse intento / encerremos seus desagrados.

Prestar uma queixa, solicitar um serviço ou informação, costuma ser um pesadelo. Digite número tal, volte ao menu inicial, informe sua senha, seu número, qual o nome do seu pai, anote seu protocolo. Quando conseguimos falar com um humano, ele nos fornecerá outro número, onde a odisseia das opções recomeçará. Escaldada dessas andanças labirínticas, é como se tivesse sido içada da tristeza pela notícia dessa troca de versos entre um cliente e uma funcionária. 

Ela veio no mesmo jornal onde o caos e o cotidiano desrespeito pela vida e pela palavra chegam-nos em grandes manchetes todos os dias. É possível ficar contente com um evento tão pontual? Sim, por ser algo tão alheio às expressões ríspidas, à conduta intolerante e ressentida que tem transformado diálogos em latidos. Sim, pela gentileza das partes envolvidas, mas principalmente pela poesia.

Tomada pelo desejo infantil de ouvir histórias, ou de que me ensinem algo, perco a oportunidade de ler mais poesia. Quando a deixo entrar na minha vida, descubro a cada vez que os poemas parecem traduzir-nos com assombrosa exatidão. Dá vontade de escrever versos nas paredes para olhar-se neles feito espelhos. O poeta é alguém menos leviano com as palavras do que nós, perdulários, que parecemos ter ganho um estoque infinito delas e as tratamos como itens sem valor. 

Cada uma será escolhida a dedo, mas será trocada sem dó. Caso mantida, ele não vacilará em mudar todo o resto para lhe oferecer melhor companhia. Depois de pronto, o verso passará por inúmeras reformas, até produzir os efeitos de concisão, profundidade e musicalidade requeridos pelo perfeccionismo dos poetas.

Levar o bem dizer para uma cena banal, como uma queixa a respeito da conta de água, é resgatar o valor perdido das palavras. Nós sofremos porque elas nos faltam em meio ao excesso. Carecemos de entender-nos porque raramente as escutamos. Falamos muito, falamos alto, escrevemos e lemos mensagens, postagens, documentos, trabalhos, textos, mas elas escorrem sem penetrar. Luiz Carlos Garcia, o cliente, e Aline Santos, a funcionária, tomaram uma atitude que poderia ser revolucionária se a reproduzíssemos: a gentileza poética, a arte de tratar qualquer assunto com a delicadeza que as palavras e seus portadores mereceriam.