sexta-feira, 31 de maio de 2019



31 DE MAIO DE 2019
DAVID COIMBRA

Agora tenho uma luneta

Comprei uma luneta. É bem pequena, um cilindro de sete dedos de altura. Não que precisasse de uma, mas vi a propaganda em um site de jornal e não resisti. Sou suscetível a publicidade e a conversa de vendedor. Uma fraqueza terrível. É por isso que, quando vou comprar uma roupa, entro na loja e aviso:

- Quero isto e aquilo e quero pagar à vista e em cash e não quero preencher nenhuma ficha e nem mesmo provar coisa alguma!

A ideia é entrar, comprar e sair em cinco minutos, 10 no máximo. Nem sempre consigo, se o vendedor é habilidoso e começa a puxar conversa com aquele seu canto de sereia de promoções imperdíveis e descontos vertiginosos. Então, sabe o que faço? Não faço. Nunca compro roupas. A Marcinha é que compra para mim.

Quanto aos anúncios, fico indefeso, sobretudo se são produtos engenhosos, como a minha lunetinha, que, segundo li, foi feita com tecnologia da Nasa. Uau!

Lembro das facas Ginsu, que apareciam na propaganda cortando sapatos ao meio como se fossem tabletes de manteiga deixados fora da geladeira. Eu via aquilo e pensava: tenho de comprar uma faca Ginsu, para o caso de precisar cortar um sapato. Mas nunca comprei. Preguiça.

Eles também mostravam, na TV, umas meias de mulher tão resistentes que o apresentador do anúncio passava uma faca nelas e nada lhes acontecia. Era como se fosse uma armadura. Praticamente um cinto de castidade. Notável.

Como seria o duelo entre as meias indestrutíveis e as facas Ginsu? Isso nenhum anúncio jamais mostrou.

Quanto à luneta que encomendei, ela faz um objeto que está, digamos, a um quilômetro de distância ficar a palmo e meio do seu nariz. Pelo menos é o que diz o anúncio. Se for verdade, será a glória.

Seria mais feliz se tivesse comprado uma luneta antes. Houve uma época, você sabe muito bem, porque já contei essa história várias vezes, houve uma doce época em que eu tinha uma vizinha pelada. Esse é o sonho de todo homem romântico, e aconteceu comigo: minha vizinha, uma morena jovem e longilínea, graciosa como uma gueparda, gostava de fazer striptease em frente ao espelho, e o fazia com a janela aberta, sempre no mesmo horário. Ela dançava languidamente, enquanto ia tirando a roupa peça por peça, peça por peça, até arrancar a minúscula calcinha num único repelão, TAP!, e quedar-se nua feito a inocência. Eu morava no prédio em frente e assistia ao show do meu quarto. Se tivesse em mãos uma lunetinha, poderia ver até as rugas do joelho dela. Mas não tinha luneta e, assim, fiquei sem rugas de joelho, uma lástima.

Não serei hipócrita, não vou mentir: quero a minha luneta para espionar a vizinhança. Não que espere ver algo extraordinário, como viram o galã James Stewart e a mulher mais meiga da história da humanidade, Grace Kelly, em Janela Indiscreta.

Não.

O que quero é exatamente o contrário. Quero ver a rotina de cada dia, quero ver o que as pessoas estão comendo no jantar, a que programa elas estão assistindo no horário do Jornal Nacional, se jogam paciência no computador, se assistem a filmes antigos deitadas no sofá, se recebem os amigos para um convescote no fim de semana, quem sabe até o título do livro que estão lendo.

Você talvez ache que não passo de um bisbilhoteiro vulgar. E talvez você tenha razão. Mas, em minha defesa, garanto que não quero fofocar nem nada, quero apenas ver a vida acontecendo atrás das paredes, porque ela, a vida, me inspira e interessa. É isso: tanto quanto viver, ver a vida acontecer é, também, uma suave alegria.

DAVID COIMBRA

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