quinta-feira, 28 de maio de 2015


28 de maio de 2015 | N° 18176
DAVID COIMBRA

O traidor da pátria

A professora avisou que iríamos discutir uma reportagem do New York Times em aula. Tive medo. Entenda: assino o Times “de papel”. Sou daqueles que gostam de apoiar o tornozelo direito no joelho esquerdo e abrir o jornal em cima da canela, enquanto bebo café. Ocorre que quase nunca há nada sobre o Brasil no NYT.

O correspondente, que, se não me engano, mora no Rio, deve viver na praia.

Dias atrás, porém, saiu uma matéria alentada, de capa, a respeito da violência da polícia brasileira. Compreensível: violência policial é o assunto do ano nos Estados Unidos.

Meu medo era de que a professora tivesse trazido justamente essa matéria. Não que queira esconder a realidade, mas não gosto de falar mal do Brasil para estrangeiros. Nós que tratemos de nossas mazelas internamente.

Bem. Era a maldita matéria.

O texto começa com a morte daquele menino no Complexo do Alemão, no mês passado, e segue descrevendo o “massacre de crianças e adolescentes pela polícia”. A folhas tantas, um diretor do Instituto Sou da Paz declara que a classe média brasileira “aceita assassinatos feitos pela polícia como uma prática legítima”.

A classe média. Sempre aprontando...

Os outros alunos me olharam, e havia certa censura no olhar deles. Preferi calar. Mas, por deboche do destino, esse gozador, havia um brasileiro novo na aula. Era a primeira vez que aquele cara aparecia, um economista de algum lugar como, sei lá, Goiânia. Esse brasileiro era desinibido e ficou excitadíssimo porque estavam falando do Brasil. A todo instante, fazia intervenções:

– Recomendo que vocês nunca visitem o Rio! Nunca! Lá, as pessoas são assassinadas a facadas em pontos turísticos!

Todos me olharam de novo.

– Não é bem assim... – tentei argumentar. – Existe violência em algumas regiões, como em qualquer lugar, mas o Rio é a cidade mais linda do mundo. Vale a pena ver.

– Na Lagoa! – gritou o brasileiro. – Estão matando na Lagoa!

– Mas as pessoas não são presas no Brasil? – perguntou a chinesa.

– São, claro. Há 500 mil presos no Brasil e...

– Mas eles são soltos! – atalhou o economista. – Presos de manhã e soltos à tarde!

– É verdade? – quis saber o russo neoliberal.

– É verdade, mas existem 500 mil presos. Quer dizer: muita gente está presa, mesmo que muita gente seja solta quando é presa...

Vi que eles ficaram confusos. E eu também. Como explicar aquilo? E em inglês?

– Os presídios lá são desumanos! – interrompeu o espanhol comunista.

– E a polícia mata crianças! – acrescentou a ucraniana, já levemente emocionada.

– Não é bem assim – protestei, temendo que a ucraniana chorasse. – No meu Estado, por exemplo, é diferente. Eu sou do sul do Brasil, e lá...

Mas ninguém me deixava concluir. A italiana havia se virado para o espanhol comunista e comentava, para que todos ouvissem:

– Eu li que os presídios do Brasil são horríveis, pior que pena de morte.

– Você deve ter lido sobre o Pizzolato – observei. – Esse caso é complicado. Esse homem é um ex-diretor do Banco do Brasil que foi condenado por corrupção. Ele alegou a má condição dos presídios brasileiros para não ser deportado, mas, na verdade...

– Ah, o Pizzolato! A corrupção no Brasil! – exaltou-se o economista. – Vocês tinham que ver o que é a corrupção no Brasil!

Suspirei. As chamas da revolta consumiam a aula inteira. A ucraniana estava prestes a chorar. Olhei para o brasileiro traidor da pátria.

– Não basta a Alemanha? – rosnei, em português.


Ninguém entendeu. Ele, sim.