sábado, 11 de fevereiro de 2023

11/02/2023 - 10h58min
MARTHA MEDEIROS 

Homenagem a Gloria Maria e a todos os que rompem correntes

De tempos em tempos, é preciso arrancar a gravata, tirar o salto alto, livrar-se do uniforme civilizatório e ficar desnudo para si mesmo. Sem movimento, a linha do monitor de batimentos cardíacos se horizontaliza e acusa o fimGilmar Fraga / Agencia RBS

Viver, para algumas pessoas, resume-se a evitar as inquietações existenciais, não se afastar muito do próprio bairro e economizar dinheiro para trocar de sofá. O que haveria de tão interessante lá fora, senão outros prédios, outras farmácias, outras árvores?

Quando comprei minha primeira passagem para o exterior, imaginei que faria um deslocamento cósmico. No entanto, deparei com outros prédios, farmácias e árvores – outro cenário, não outro planeta. O que virou minha cabeça foi o confronto com outro eu.

Nunca me conformei em preencher todos os meus dias com horários definidos para dormir e acordar, com os telefonemas regulares para a família, com os mesmos trajetos e as mesmas conversas. Até a temperatura de amanhã é prevista na véspera. 

Esse exaustivo ensaio de uma vida que nunca estreia já inspirou música boa – “Todo dia ela faz tudo sempre igual...” – mas o confinamento definha. Salve a rotina, desde que tracemos alguns planos de fuga.

Imagino que uma pessoa que precisou trabalhar na lavoura desde pequeno tenha uma ideia diferente de liberdade, são outras as premências. Ainda assim, em um momento de descuido, há de surgir uma fresta por onde escapar – se houver mesmo o desejo. E aí se faz uma estrada.

Mar aberto. Desertos. Florestas. Tribos indígenas. Montanhas. Canyons. Cidades históricas. Geleiras. Santuários ecológicos. Templos orientais. Pirâmides. Vulcões. Ilhas. Caminhos sagrados. Vilarejos humildes. Ruínas. Metrópoles de cinema. Praias selvagens.

De tempos em tempos, é preciso arrancar a gravata, tirar o salto alto, livrar-se do uniforme civilizatório e ficar desnudo para si mesmo. Trocar de pele. Morrer e renascer, morrer e renascer, a fim de voltar mais forte.

Sem movimento, a linha do monitor de batimentos cardíacos se horizontaliza e acusa o fim. Em vez de estacionar em ponto morto, que haja coragem para se expressar em um idioma diferente, encontrar outros meios de se traduzir, preparar o olhar para novas combinações de cores, refinar o paladar para sabores esquisitos, compreender que há outros jeitos de cumprimentar as pessoas, outros tipos de casamento, outras formas de higiene, outras maneiras de se atravessar um rio, outros deuses, outros modos de se vestir, outros mistérios. Essa incrível universalidade aniquila a soberba e desperta insuspeitas virgindades em nós, o que é sempre rejuvenescedor.

Não podendo viajar, nem tendo acesso a tipos diversos de seres humanos, pode-se ir bem longe através dos livros. Bibliotecas contêm todos os países e as almas mais exóticas. “Você não é nada mais do que sua vida”, definiu Sartre. Essa coluna é em homenagem a Gloria Maria e a todos os que rompem correntes, atravessam paredes e assumem o volante.

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