sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023


24 DE FEVEREIRO DE 2023
CELSO LOUREIRO CHAVES

Ouvir mortos

Dizem que uma das consequências da invenção da gravação de som, lá no século retrasado, foi a possibilidade de ouvir a voz de pessoas mortas. A voz, a música e os instrumentos. Continua-se a ouvir quem já se foi daqui há muito, seja Arthur Rubinstein ao piano, Montserrat Caballé cantando em duo com Freddie Mercury, o piano e a voz de Tom Jobim nas suas bossas novas. Ouvir mortos: aí está.

Talvez fosse por isso que meu pai tinha pavor a que lhe gravassem a voz. Ouvir qualquer coisa gravada era mesmo um horror. Ele gostava muito da tecnologia de gravar, mas não do seu produto. Era um fã da fotografia, da filmagem e da gravação - estava sempre atrás dos últimos lançamentos tecnológicos. Mas confrontar o que aquelas máquinas mágicas produziam já era outra história.

Essas ideias me vieram depois que, na crônica passada, mencionei o maestro Georg Solti e sua gravação emblemática de O Anel do Nibelungo, as quinze horas de ópera inventadas por Richard Wagner. Fui conferir esse produto dos anos 1950-1960. Dito e feito: um parque de diversões de defuntos. Do maestro ao produtor, das estrelas do canto aos instrumentistas, só o trompista solista ainda segue por aí, ao lado de alguns poucos outros.

Fui me certificar disso assistindo no YouTube o documentário da gravação, uma espécie de "making of" muito antes do tempo dos "making of". Em preto e branco! A imagem em formato quadrado! As técnicas de gravação que hoje se aproximam da arqueologia, mas que também me lembram os tempos de rádio Atlântida, algo que vai longe na minha biografia.

Desde os anos 1960 até agora, o registro icônico dessa primeira gravação integral do Anel do Nibelungo em estúdio tem feito os seus mortos renascerem de tempos em tempos. Mesmo agora em junho, novas técnicas de digitalização vão fazer com que George Solti e Birgit Nilsson surjam rejuvenescidos em vinil, em CD, nas plataformas digitais, música a postos!

É o poder das gravações: eternizar o que já foi, fazer ressoar o passado, lavado e lustrado pelas técnicas do presente. Por isso o livro de John Culshaw, produtor e cronista da gravação, se chama O Anel Ressoa. Quanto ao "making of", basta procurar por The Golden Ring (O Anel Dourado) no YouTube. Meu pai teria gostado, mais pela possibilidade técnica de ter na ponta da tela um sem-fim de opções do que da realidade de ouvir as vozes dos que já se foram, as músicas de gente que desapareceu a perder de vista.

CELSO LOUREIRO CHAVES

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