sábado, 11 de fevereiro de 2023


LITERATURA

O LIVRO

A amizade entre dois dos maiores escritores da América Latina terminou com desavença, empurrão e um soco no olho esquerdo de Gabriel García Márquez desferido por Mário Vargas Llosa. Essa é, também, uma das imagens mais famosas da literatura: a foto de Garcia Márquez com o olho roxo, gargalhando.

A amizade terminou ali mesmo, em 1976. O colombiano e o peruano eram amigos desde 1967, quando iniciaram uma amizade fervorosa, incomum até, para um pessoa como García Márquez, tipo reservado e que não levava desaforo para casa. Os dois nunca revelaram o motivo da briga. Podemos, apenas, especular, o que, aliás, ajudou a manter a história muito popular: ou foi motivo político ou ciúmes de mulher. Político porque Vargas Llosa, no princípio, era comunista fervoroso, simpatizante da Revolução Cubana, mas depois adernou à direita e hoje é um arauto do liberalismo. 

E García Márquez nunca deixou de ser um ferrenho comunista. Sobre as mulheres: mesmo baixinho, feio e dono de um bigodinho medonho, García Márquez tinha fama de galanteador. Vargas Llosa era um espécie de Alain Delon latino: alto, esbelto, cabelo parelho, penteado para trás. Não era só fama; ele de fato era um galanteador, embora casado.

Ambos ganharam o Prêmio Nobel após a publicação de livros memoráveis. García Márquez escreveu, entre outros, os best-sellers O Amor nos Tempos do Cólera e Do Amor e Outros Demônios, além do clássico Cem Anos de Solidão. Vargas Llosa deixará um legado também impactante: Pantaleão e as Visitadoras, Tia Julia e o Escrevinhador e os romances históricos igualmente geniais A Guerra do Fim do Mundo (sobre Canudos), e A Festa do Bode (sobre a ditadura de Rafael Trujillo na República Dominicana).

Em 1967, quando só haviam se visto uma vez na vida, eles se reencontraram em um debate sobre o romance latino-americano realizado em Lima. Vargas Llosa era o organizador. E convidou García Márquez, escritor que passara a admirar profundamente, sobretudo pelo impacto do então recém-lançado Cem Anos de Solidão. Era um tempo em que o termo "realismo fantástico" ainda não havia sido difundido. O evento foi tão prazeroso para ambos que acabou estendido, e García Márquez e Vargas Llosa, assim, puderam debater ao longo de dois dias, e não apenas um, como estava previsto inicialmente.

O resumo daqueles dois dias virou uma publicação momentânea, que se perdeu com o tempo e desapareceu. Mas ressurge agora no livro Duas Solidões - Um Diálogo sobre o Romance na América Latina, publicado no Brasil no final de 2022. Cem Anos de Solidão, naturalmente, foi o tema central do debate. Como entrevistado, García Márquez foi instigado a falar sobre a obra - e sobre a solidão, sobre sua vida pessoal, sobre o homem latino-americano. 

O colombiano mostra-se surpreendentemente à vontade - ele que tinha fama de tímido ao falar em público - e descreve, em detalhes, a vila onde morou na infância, a "poeirenta" Arataca. García Márquez nos ensina: "A primeira grande dificuldade é aprender a escrever. Essa é a parte que eu acho misteriosa, a parte inata, e que fez com que eu seja escritor ou estenógrafo. Aprende-se lendo, trabalhando sobretudo sabendo uma coisa: escrever é uma vocação excludente, todo o resto é secundário. A única coisa que a gente quer é escrever".

Vargas Llosa explora também os limites entre a vida pessoal e a obra literária. E apresenta aptidão e desenvoltura como entrevistador. Evoca outro gigante latino-americano, Jorge Luis Borges, e até parece que antevê o que fará no futuro quando analisa 35 clássicos da literatura no livro A Verdade das Mentiras. Sem tablet, teleprompter ou qualquer outro dispositivo eletrônico para auxiliar a leitura.

É o improviso que dá liberdade ao bate-papo. Tanto que, ao iniciar o segundo dia de conversa, García Márquez sequer lembra sobre o que discorria quando houve a interrupção, ao final do primeiro dia. Pode-se dizer que ali começava a amizade entre os dois mestres dos livros, amizade esta que terminaria com a misteriosa briga registrada sete anos depois.

Ao final de Duas Solidões - Um Diálogo sobre o Romance na América Latina, os leitores são brindados com um depoimento-entrevista atual em que Vargas Llosa fala sobre García Márquez, inclusive lamentando a morte do amigo, ocorrida em 2014. Vê-se que o peruano não guarda rancor do antigo parceiro com o qual brigou, há mais de 40 anos.

Duas Solidões - Um Diálogo sobre o Romance na América Latina - De Gabriel García Márquez e Mário Vargas Llosa. Tradução: Eric Nepomuceno. - Ed. Record, 112 páginas, R$ 45, em média 

DANIEL SCOLA 

Nenhum comentário:

Postar um comentário